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Cinema depende cada vez mais de astros como Tom Cruise e Chadwick Boseman

'Top Gun: Maverick' e 'Wakanda para Sempre' estouraram nas bilheterias ancorados em figuras quase míticas

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Wesley Morris
The New York Times

Obviamente, dois dos maiores filmes do ano são apenas os segundos episódios de franquias que podem continuar rendendo muito tempo depois que nós tenhamos saído de cena. Um deles chega a intitular-se "Wakanda Para Sempre". Mas estou nos observando devorar esse filme e também "Top Gun: Maverick" e vejo um referendo sobre uma questão mais premente: os astros e como o cinema deixou de fazer uso deles.

Foto de Tom Cruise rindo
O ator Tom Cruise durante uma conferência de imprensa do filme 'Top Gun: Maverick' in Seul, Coreia do Sul. - (Anthony Wallace/AFP)

Enquanto aguardávamos a chegada de "Pantera Negra: Wakanda Para Sempre", a tensão e o suspense — pelo menos pelo que pude avaliar— tinham tudo a ver com a ausência do astro do primeiro filme. "Pantera Negra" converteu Chadwick Boseman em astro. O segundo filme atraiu nosso interesse para ver o vazio deixado por sua ausência. "Wakanda Para Sempre" celebra Boseman, o homenageia, mantém sua memória viva.

O logotipo da Marvel que passa rapidamente perto do início destes filmes como montagens de seu elenco de personagens —Thor, Homem de Ferro, Hulk e todos os outros— virou um show de luzes dedicado a Boseman. E, depois disso, o filme continua por mais duas horas e meia, tempo de sobra não apenas para chorar a morte desse homem, mas para sentirmos sua falta. Há mais coisas –não apenas a ausência de Boseman. Mesmo assim, milhares de pessoas curiosas queriam saber: quem ousaria tentar vestir essa fantasia?

"Maverick" é o oposto: um vazio entupido de luz. Quando Tom Cruise retorna vitorioso ao navio de guerra no final, ele é saudado com o tipo de aplausos extáticos que você tende a ver quando seu time ganha um campeonato depois de cem anos de seca ou quando figurantes são libertados num daqueles blockbusters imperialistas ridículos de Hollywood.

Só que são militares profissionais! Mas esse tipo de paixão ridícula deve ser uma coisa muito nossa. "Maverick" é o filme que rendeu mais no planeta em 2022, por uma margem de muitos quilômetros. O "Top Gun" original foi sucesso em 1986, mas não de modo tão majestoso quando este. E parece que Tom Cruise nunca significou tanto para nós quanto agora. Um pouco desse deslumbramento todo com ele parece ser fruto da escassez. E talvez "Top Gun: Maverick" nos tenha dado saudades de tempos de mais fartura.

Há menos filmes hoje, e ainda menos do tipo que no passado deixavam um ator desenvolver uma persona com o passar do tempo e se converter em um Tom Cruise: filmes sobre pessoas em aperto, em perigo, em pânico, em perseguição, no céu, no cio, em Eastwick, Encino, Harlem e Miami, em lugares ermos, em planícies, em terras devastadas, em terras amadas. Blockbusters, fracassos, filmes que demoravam a fazer sucesso, mas então faziam.

Eram relativamente pouco caros –semi-intelectuais era uma descrição que se aplicava a eles— e contavam histórias sobre personagens originais, não mutações de propriedades intelectuais (ou não sempre, em todo caso). E muitas das pessoas que atuavam neles eram o que descrevemos como astros e estrelas.

Pessoas que eram sempre um pouquinho mais que nós, comuns mortais: mais duronas, mais espirituosas, mais bonitas, mais bobinhas, mais em forma, mais insensatas, mais corajosas, mais divertidas, mais francas, mais malucas, mais desbocadas.

Ainda temos astros e estrelas. E não queremos abrir mão deles. Saímos em peso para ver Viola Davis fazendo uma rainha africana em "A Mulher Rei", que passou uma semana no topo das bilheterias. Eu, pelo menos, fui para curtir a sensação de vê-la encarnando uma guerreira "bad mama", e ela supera as expectativas.

Os astros e estrelas também não querem abrir mão de ser estrelas. Este deveria ser um artigo falando de como Miles Teller é bom em "Maverick". Mas não posso escrever isso. Não posso porque Tom Cruise é melhor –é melhor em "Maverick", é melhor em ser Tom Cruise do que Miles Teller é em ser Miles Teller. Não é culpa de Miles Teller. Apesar de o bigode que ele ostenta parecer que está sendo sugado para dentro de suas narinas, é óbvio que ele tem um quê.

Pense na cena em que ele improvisa corajosamente quando está no ar e acaba caindo atrás das linhas inimigas. Quando Cruise o localiza e pergunta o que diabos ele pensou que estivesse fazendo, Teller reage com exatamente a dose certa de exasperação perplexa para deixar o público gargalhando. "Você me falou para não pensar!", ele diz. Gargalhei até cair na real e me dar conta: ei, faltam só uns 15 minutos para o filme acabar. Onde esse cara estava nas duas últimas horas? Bem, a verdade é que não vem ao caso onde estava mais ninguém em "Maverick". Só quem vem ao caso é Tom Cruise.

Ator Miles Teller,
Ator Miles Teller, que também fez parte de Top Gun: Maverick' in Seoul on June 20, 2022. ( - (Foto:Anthony Wallace/AFP)

Entendo por que este filme foi recebido com alívio nacional quando estreou no fim de semana do Memorial Day. É a única coisa que muitos de meus amigos foram ver no cinema neste ano, e eles voltaram até mais duas vezes para repetir a dose. Para começar, sempre que a história está acontecendo no céu, é empolgante. O jeito como aqueles jatos todos praticamente se namoram é sexy. Mas a verdadeira atração é Tom Cruise, que está quase no auge de sua persona de Cruise: vulnerável e invulnerável, malicioso e sincero, charmosamente irritante, irritantemente charmoso.

Ele completou 60 anos em julho, mas conserva todo o brilho sorridente de um escoteiro águia. E, embora aquele seu rosto não traia qualquer concepção razoável do passar do tempo, o passar dos anos lhe conferiu mais valor aos nossos olhos.

"Maverick" é o ápice de um investimento de quatro décadas que fizemos nele. Seja o que for que significa "Tom Cruise", foi preciso toda uma sequência de filmes para nos educar, nos seduzir e nos persuadir, para que finalmente entendêssemos que todos os sorrisos, a intensidade e o movimento somados dariam uma persona capaz de resistir a qualquer humilhação (trabalho de barman sincronizado, ser baleado por um protegido, orgias mascaradas, "A Múmia"), porque os próprios filmes são designados para garantir o sucesso dele. O triunfo é um luxo decorrente do estrelato.

 Tom Cruise em cena do filme 'Top Gun: Maverick'
Tom Cruise em cena do filme 'Top Gun: Maverick' - Paramount Pictures/Divulgação

As pilhas de dinheiro que "Maverick" atraiu levaram algumas pessoas na imprensa a concluir que, depois do colapso da indústria do cinema induzido pela pandemia, o cinema estava de volta e que a razão disso seria Tom Cruise. Mas estamos nos reunindo para acompanhar o fim dos astros do cinema, não sua ressurreição. Tom Cruise ainda é um astro. Mas quem mais em "Top Gun: Maverick" o é? O próprio filme é sobre a permanência de Tom Cruise, seu caráter sobrenatural.

A melhor cena é vista perto do começo, quando Tom Cruise pilotou um jato militar para além de seu limite e mergulhou de um ponto quase no espaço. Desgrenhado e envolto em seu paraquedas, ele entra cambaleando numa espelunca em algum lugar que poderia ser Mayberry e pergunta aos comensais atônitos: "Onde estou?" E um caipirinha inocente ergue os olhos de seu prato e responde com precisão: "Na Terra". O estrelato de Cruise nem sequer continua familiar para a América Média. É uma coisa do além.

Ilustração de Mengxin Li para reportagem sobre a falta de estrelas monumentais em Hollywood
Ilustração de Mengxin Li para reportagem sobre a falta de estrelas monumentais em Hollywood - Mengxin Li/The New York Times

A trama pede que tenhamos pena dele. O ás da aviação de 1986 agora é um piloto que já passou do seu apogeu e foi recrutado para ensinar a ases mais jovens o que eles precisam saber para dar conta da tarefa militar absurda que coroa o filme. Um deles é Teller. Mas isso não tem importância. Cruise conclui que ele é o melhor de todos. As crianças não terão outra escolha –terão que se reunir em volta dele para ouvir suas histórias. Mas quando ele está lá no alto, dominando tudo, só pude pensar: faz sentido. Ninguém domina um filme como ele. "Maverick" funciona como metáfora disso, também. O filme sabe para que viemos ao cinema, e não foi para ver Miles Teller.

Isso não é culpa de Teller –é do cinema. Hoje há poucos filmes do tipo que lhe permitiriam ir construindo uma persona que todos estaríamos querendo ver daqui a 36 anos. Billy Eichner tentou se incluir numa comédia romântica, um gênero que é tão essencial ao cinema americano quanto o leite é essencial para a fabricação de queijo, mas ao qual os estúdios vêm fazendo resistência este século, como se fosse uma espécie de intolerância tardia à lactose. Intitulou o filme "Mais que Amigos" e ele próprio é um dos protagonistas, um podcaster maluquinho que se apaixona por um engravatado (Luke Macfarlane). Quando o filme fracassou nas bilheterias, as pessoas botaram a culpa na homofobia.

"Exatamente!", eu quase falei.

Depois me lembrei de uma coisa. Não sou hétero, mas não fui assistir. Tampouco a maioria das pessoas não-hétero em minha vida foram. Para explicar o público fraco desse filme, eu começaria mencionando os outdoors e cartazes, que me deixaram confuso. Dois traseiros adjacentes, de jeans, a mão de um dos homens cobrindo o bolso de trás do outro. De quem são essas bundas?

Ficou implícito que uma delas seria de Eichner. Estranho que os pôsteres não compartilhassem essa informação. Mas uma omissão como essa é em si uma revelação ansiosa: quem diabos é Billy Eichner? Quero dizer, sei quem ele é. Eichner é o comediante que nos deu o game show "Billy on the Street", um antidepressivo de minutos de duração em que Eicher é um garanhão desgovernado que arrasta algum famoso e interrompe os passeios de nova-iorquinos comuns. Você assiste e pensa: "Comédia maluca? Sim. Comédia romântica? Não sei. Veremos."

O próprio filme é sobre como ele é maluco-versus-romântico. Mas a maioria dos anúncios que vi não divulgava Eichner. Divulgavam um marco importante (a primeira comédia romântica gay produzida por um grande estúdio e que não precisou sair do armário, porque o armário já ficara para trás) –mas esse marco foi produzido por gente cujos filmes anteriores estão cheios de paranoia gay. Eichner não é posicionado como o astro desse trabalho. O astro é sua identidade gay. Então é claro que o filme fracassa. Parece uma crise política.

Uma crise real é outra coisa, porém, e está ali mesmo, naquelas bundas anônimas: não temos mais astros do cinema! E as bilheterias fracas de "Mais que Amigos" –pelo menos nos cinemas—me levam a pensar que Eichner não terá muitas outras oportunidades para tornar-se astro.

Vi um anúncio de "Mais que Amigos" no metrô ao lado de um cartaz de Julia Roberts e George Clooney em "Ingresso para o Paraíso", uma comédia romântica hétero, certinha, controlada, que aposta em 50 anos conjuntos de estrelato, mas não tem ideia do que fazer com isso exceto promover o próprio estrelato.

Mas Roberts e Clooney levaram sua química para a mídia. Pareciam entusiasmados –se não com o filme, com certeza entusiasmados um com o outro. Embora o cartaz os tenha delatado, ele te informa exatamente o que você precisa saber sobre esse filme: ele tem dois veteranos cuja condição de astro e estrela é uma história que, evidentemente, ainda vende a si mesma. O filme é um sucesso.

O sucesso de algo como "A Mulher Rei" também faz sentido. Muitos de nós saímos de casa para ver Viola Davis arrasar. Graças ao carisma e à pura e simples força cinética das mulheres ao lado dela –Thuso Mbedu, Lashana Lynch, Sheila Atim, Adrienne Warren—pudemos ver muito mais que isso.

"A Mulher Rei" é um veículo para Davis reforçar seu elo conosco através da arte, em vez das redes sociais. Antes de ir ao cinema eu não imaginava que pudesse gostar dela mais do que já gostava, mas lá estava eu, com admiração redobrada. É um filme pipoca suficientemente original estrelado por mulheres, e mais, mulheres negras. É uma raridade e tanto.

Toda uma massa terrestre fértil do cinema americano ficou árida –deixaram que ficasse árida—para dar lugar à exploração máxima da chamada propriedade intelectual. De vez em quando ainda vemos vislumbres do material antigo.

Denzel Washington continua a encontrar variações sobre o magnetismo entre parceiros de pavio curto, acrescentando misantropos e desajeitados a seu zoológico de personagens. Ele está com 67 anos. Desde 1989 atua em um filme, às vezes dois, por ano, ou quase. E a maioria desses filmes fizeram sucesso. Quarenta capítulos na história de uma persona. Os números de Tom Cruise são mais ou menos os mesmos.

Hoje em dia Hollywood lança muito menos filmes. As carreiras dos atores parecem ser mais curtas ou pelo menos mais difusas, e os filmes menos robustos em sua diversidade temática. Logo, nenhum ator que hoje tem menos de 40 anos deve chegar perto desses números.

O que perderíamos de fato sem esse tipo de longevidade, sem estrelas e astros importantes do cinema? Um espelho? Um farol? Um mapa do caminho? Um portal? Não é questão de descobrir quem queremos ser, mas de deixar o cinema nos mostrar quem pensamos que somos. Os astros e estrelas nem sempre foram obrigados a investir seu talento na representação de super-heróis. Usaram esse poder para representar a nós –pessoas.

Bem, talvez haja uma espécie de justiça no fato de esse poder estar chegando ao fim. Adeus a um sistema que importou para sua fábrica de sonhos o que esse país possui de pior em matéria de preconceitos e princípios. Capitalismo selvagem, branquitude improvável, negritudes indefensáveis. Poucos personagens asiáticos, mexicanos, árabes ou indígenas americanos que alguém já tivesse conhecido na vida real –isso porque, para começar, em muitos casos os atores que faziam esses papéis eram brancos.

Nossa exposição prolongada deixou os astros plantarem seu glamour, seu estilo e sua perfeição controlada dentro de nossas psiques, para ali forjar a espécie de identificação deturpada que convida, digamos, um garoto negro curioso de Filadélfia a fantasiar que é uma beldade sulina irritante numa plantation destruída da Georgia.

Tudo isso para dizer que posso ter consciência de tudo isso e ainda sim acreditar que meio século de filmes de Clint Eastwood, dezenas de filmes, constitui uma explicação tão boa dos Estados Unidos quanto qualquer política pública. Eastwood é sua própria legislação. É claro que um eu jovem, vendo-o em "Impacto Fulminante", "Pink Cadillac" ou "Um mundo perfeito", não teria sabido de nada disso. Simplesmente teria me rendido diante dele, tão absurdamente assistível.

E, se o que estamos discutindo é também a qualidade de ser absurdamente assistível, talvez ela migre no tempo, passando do cinema mudo para o sistema clássico dos anos 1930 e 1940, para a ruína da década de 1970, os indulgentes anos 1980 e os reacionários e revisionistas anos 1990. No momento, ela se manifesta em outro lugar inteiramente. No TikTok. O estrelato nas redes sociais é movido pela transitoriedade. Para o estrelato no cinema, é preciso atenção. E é possível que nossa paciência para isso tenha se esgotado.

Eu diria que o timing é infeliz, isso porque há mais de uma década estamos com uma fartura de atores que fariam jus a essa atenção –atores que, ao longo de uma carreira robusta, também poderiam oferecer uma explicação deste país tão boa quanto Clint Eastwood.

Pense nessa seca em um momento que nunca foi tão rico em nomes para os quais faltam diretores: Miles Teller, Alden Ehrenreich, Simu Liu, Issa Rae, Finn Wittrock, Hong Chau, Dane DeHaan, Zoë Kravitz, Raúl Castillo, Jay Ellis, Kumail Nanjiani, Tye Sheridan, Dave Bautista, Regé-Jean Page, Alia Shawkat, Yahya Abdul-Mateen II, Max Minghella, Rachel Zegler, Jake Lacy, Daisy Ridley, Kelvin Harrison Jr., O’Shea Jackson Jr., Tiffany Haddish, Quvenzhané Wallis, Marsai Martin, Jeremy Pope, John Boyega, Ariana DeBose, Teyonah Parris, Nicholas Hoult, Gina Rodriguez, Christopher Abbott, Jonathan Groff.

Os filmes não são feitos para que eles continuem a ser astros dentro de 30 anos. Mais de um desses atores já perderam o bonde do estrelato.

É uma crise de fato. E o cinema sabe disso. Em "Maverick", o que é cômico é que não há ninguém tão qualificado quanto Tom Cruise. Durante duas semanas em agosto, nosso filme número um foi "Trem-Bala", um suspense policial intermitentemente divertido, mas tedioso na maior parte do tempo, que faz Brad Pitt combater nomes mais jovens –Brian Tyree Henry e Aaron Taylor-Johnson, Zazie Beetz e Bad Bunny—e casualmente matar quase todos.

Brad Pitt em cena do filme 'Trem-Bala', de David Leitch
Brad Pitt em cena do filme 'Trem-Bala', de David Leitch - Scott Garfield/Divulgação

Eles querem o que ele tem: uma pasta cheia de dinheiro. Mas também querem sua estatura. O estilo descontraído, indiferente a tudo de Brad Pitt precisou de 30 anos e quase 30 filmes para Pitt ficar tão à vontade consigo mesmo que ele consegue harmonizar sabedoria e vacuidade. As lutas todas corpo-a-corpo representam a autopreservação de Pitt.

Ingressamos num momento estranho em que as participações mais cativantes, notáveis e notórias dos grandes astros e estrelas têm acontecido em tudo menos no cinema. No banco das testemunhas (Johnny Depp); numa minissérie da NBC (Renée Zellweger); em 20 minutos tensos numa coletiva de imprensa na Casa Branca (Matthew McConaughey); na entrega dos Oscar, no caso de Will Smith, e nem sequer por ter ganho o Oscar de melhor ator.

E há o caso de Brie Larson, que de ganhadora do Oscar em 2016 (por "O Quarto de Jack") passou a exuberante protagonista de franquia em "Capitã Marvel". Ela tem apenas 33 anos, e não sei se a verei outra vez na vida representando uma figura humana comum. Mas por algum tempo, sempre que eu assistia a algum evento esportivo na TV, podia ter certeza de vê-la tentando me vender uma Nissan. Antes de receber aquele Oscar, Larson fizera mais de 20 papéis no cinema e na televisão. Que tipo de estrela poderia ter sido com, presume-se, mais acesso a papéis melhores? Nunca saberemos a resposta, porque onde estão os papéis bons para ela e a meia dúzia de atrizes com quem ela estaria competindo para fazê-los?

Estamos diante de uma abundância de talentos sem qualquer lugar muito criativo para ir. Há as redes a cabo premium e os serviços de streaming. Hoje a televisão é a terra dos filmes semi-intelectuais. E pessoas como Nicole Kidman, Reese Witherspoon e Kate Winslet fizeram alguns de seus trabalhos mais ousados na TV. Elas são pragmáticas. Tom Cruise não chegou perto de um "True Detective", "American Crime Story", "Mare of Easttown" ou "Yellowstone." Isso quer dizer o quê? Que ele é ingênuo? Teimoso? Resoluto? Que ele tem razão?

Uma coisa que amamos nele é que ele adora ser "Tom Cruise". Tem prazer em nos mostrar seu trabalho: os punhos cerrados, os socos no ar, a corrida eterna. Basicamente, Tom Cruise vive para alcançar aquele estado máximo de inchamento da personalidade também conhecido como... Tom Cruise.

Tom Cruise parece saber que sua especialidade faz parte da lista de espécies em risco de extinção. Que os verdadeiros astros hoje são propriedade intelectual: remakes, reboots, planos de parcelamento cinematográfico.

Thor, não Chris Hemsworth. Homem-Aranha, em oposição a Tom Holland, Andrew Garfield ou Tobey Maguire. Todos aqueles Batmen. Podemos contemplar os astros voando em volta das sequelas de "Vingadores" e "Liga da Justiça" e sentir uma pequena vibe astral. Mas eles não formam constelações.

Tom Cruise tem sido esperto (ou cínico, quem sabe) em relação à conjuntura atual do cinema. "No Limite do Amanhã", de 2014, é a coisa mais divertida e inovadora que ele fez em uma década, mas, já que não rendeu 1 bilhão de dólares (esse é o critério real hoje), parece um fracasso. Se ele receber outro roteiro tão bom quanto aquele, será que vai recusá-lo? É provável que sim. O negócio é arriscado demais. O povo quer mais "Missão Impossível", mais "Maverick".

Tom Cruise em "Missão Impossível"
Tom Cruise em "Missão Impossível" - Divulgação

Em 1986 Tom Cruise era mais do que apenas "Top Gun". Cinco meses mais tarde ele estava de volta, agora em "A Cor do Dinheiro". O filme não foi realmente de Cruise. Foi de Paul Newman, sendo uma sequência de seu drama "Desafio à Corrupção", sobre um jogador de sinuca, 25 anos mais tarde. Aqui o inconformista –o "maverick"—decadente é Newman, ensinando Cruise como se comportar, aperfeiçoando sua habilidade na sinuca e mostrando a ele como explorar esse talento todo.

Paul Newman tinha 61 anos, mas seus 61 anos não se pareciam em nada com os 60 anos extraterrestres de Tom Cruise. Newman está grisalho e enrugado. Há história nessas rugas: reservas de tristeza, perdas, decepções, vergonhas, mágoas, solidão, aliviados por cigarros e bebida. Para um astro veterano, essas são virtudes. São moeda forte. E o filme obriga o espectador a apreciar o passar do tempo –as décadas que ele viveu, as décadas que nós vivemos ao lado de uma versão dele. Até que ponto ele mudou? Até que ponto nós havíamos mudado?

"A cor do dinheiro" é o oposto daquele primeiro "Top Gun". Em lugar de exibicionismo machista, é uma exibição de atratividade. É também um filme de Martin Scorsese (que Richard Price escreveu). Scorsese sabe o que tem em Paul Newman: significado. Seu maior truque é o tempo que o rosto de Newman passa atrás de óculos escuros. Aqueles olhos azuis brilhantes dele parecem destoar da sujeira e tristeza do salão barato de sinuca onde a história acontece.

Diretor de cinema Martin Scorcese
Diretor de cinema Martin Scorcese - Divulgação

Assim, Scorsese os trata como duas pedras preciosas protegidas em um cofre. E nós temos a oportunidade de lembrar o que o resto de Paul Newman, sem seus olhos, é capaz de fazer, com imobilidade e pausas, exasperação, pesar e alegria.

Não que Scorsese não saiba o que tem em mãos com Tom Cruise: bombas explodindo no ar. Sempre que pode, o filme observa Newman observando Cruise, absorvendo-o, captando sua vulgaridade, seu volume, sua volatilidade. "Dando uma de babá", ele resmunga. Mas ele também pressente o inevitável. "Você vai ser um dos grandes nomes, garoto", ele diz a Cruise, segurando um maço de cédulas de US$ 100. Se você por acaso assistiu a "Top Gun" no verão e a "A Cor do Dinheiro" no outono, provavelmente teve o mesmo pressentimento.

Você teria visto dois tipos diferentes de astros (dignidade e peso, em um caso, e antigravidade, no outro) em fases opostas de suas carreiras. Talvez tivesse apreciado como, apesar de Paul Newman estar longe de estar encerrando sua carreira no cinema na época, estava passando o bastão para outra geração de astros. Hoje Hollywood não se dá mais ao luxo desse tipo de generosidade.

Desculpe, Miles Teller. Todas as novas apostas estão canceladas, e Tom Cruise deve saber disso. Em "Maverick", ele passa o bastão para ele mesmo.

Tradução de Clara Allain

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