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No péssimo 'Factótum', Bukowski equipara melancolia a lucidez

Livro é ruim e enfadonho por ser espécie de bastidor de romance que, desnutrido, morre sem nem sequer começar

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Ligia Gonçalves Diniz

Professora de teoria da literatura na Universidade Federal de Minas Gerais

Factótum

Avaliação: Ruim
  • Preço: R$ 69,90 (272 págs.); R$ 49,90 (ebook)
  • Autoria: Charles Bukowski
  • Editora: HarperCollins
  • Tradução: Emanuela Siqueira,

A tradição literária moderna, masculina e ocidental nos deixou duas grandes lições a respeito da relação entre a lucidez com que se encara o mundo e o estado de espírito resultante disso. A primeira, já um tanto problemática, é a de que o sujeito que encara os horrores do mundo de frente, com inteligência e sem covardia, é inevitavelmente um melancólico.

A segunda, realmente danosa, é a de que basta ser melancólico para se passar por lúcido, inteligente e corajoso. Charles Bukowski é um dos grandes propagadores dessa grande bobagem.

O escritor americano Bukowski - Divulgação

No caso de "Factótum", de 1975, seria, talvez, o caso de reconhecer que o próprio autor trata com ironia essa relação, elaborando um personagem infeliz e desajustado, com o qual não queremos nos parecer, um "loser" enfim.

Mas, a julgar pela quantidade de gente que de alguma forma quis e quer emular essa persona, seja nas páginas ficcionais, seja nas ruas, a ironia não foi muito bem compreendida.

Não ajuda o fato de que —entre um porre e uma ressaca, entre um emprego precário e um cheque demissional— seu alter ego Henry Chinaski seduz um boa quantidade de mulheres e conquista a simpatia de outros caras tão à margem quanto ele próprio com tiradas espirituosas e o charme de quem não tem nada a perder, a não ser a liberdade.

É a liberdade que Chinaski perde e reconquista a cada emprego que arranja e a cada besteira que faz propositalmente para ser dispensado, em uma sequência de serviços medíocres que estruturam o desenvolvimento de "Factótum" (do latim tardio, "faz-tudo").

Estamos no período no fim da Segunda Guerra Mundial, e o personagem, que narra sua história em primeira pessoa, foi dispensado de lutar e expulso de casa pelos pais e circula por algumas cidades, entre as quais se destaca Los Angeles, juntando dólares para beber e escrever contos, que envia a revistas praticamente sem sucesso. Aqui e ali, uma mulher embarca com ele no cotidiano deprimente de álcool, sexo e frustração.

"Factótum", que hoje chamaríamos um romance autoficcional, é o primeiro de uma série de relançamentos de títulos de Bukowski que a HarperCollins vem preparando. A fim de atualizar a obra, famosamente machista, preconceituosa e decadentista, foi escolhida uma tradutora, Emanuela Siqueira, que pesquisa crítica feminista e se esmerou em contextualizar, sem atenuar, a dicção de Chinaski.

O resultado é um trabalho cuidadoso e uma profusão de notas bem-informadas, que demonstram o desconforto em lidar com esse texto, desconforto que aparece também em um posfácio da escritora Clara Averbuck.

A misoginia e o racismo, ou mesmo a romantização do artista maldito, são problemas, porém, extraliterários: conhecemos inúmeros personagens moralmente terríveis que habitam belos romances. A tremenda obra, também "autoficcional", do francês Louis-Ferdinand Céline, ídolo de Bukowski, é sempre o exemplo na ponta da língua.

Mesmo a profusão bastante gratuita de imagens abjetas em "Factótum" –abundam cuecas manchadas, alimentos podres e vômitos– podem ser justificadas pelo esforço de tornar visível, de forma contundente, a miséria da vida urbana desencantada, das relações humanas obscurecidas pela pobreza e a desesperança, do alcoolismo.

O que torna "Factótum" um livro ruim e mesmo enfadonho é o fato de que se trata, na realidade, de uma espécie de bastidor de romance. Bukowski tem o mérito de apontar um contingente social e um modo de vida como arcabouços possíveis para uma narrativa literária, mas não vai além disso, e o romance morre sem começar, desnutrido.

Aos leitores que se interessem por esse mundo, mas que não queiram perder tempo com páginas e páginas de bundas que balançam, alimentos regurgitados e empregos desperdiçados, há nas prateleiras muitos autores –os contistas Lucia Berlin e Denis Johnson, por exemplo– que sabem povoar seus livros com personagens verossímeis e histórias com substância.

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