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Olimpíadas 2024

França vê seu reflexo num espelho borrado na abertura das Olimpíadas

Festa foi uma grande alegoria de um país que se enxerga plural, mas não deixa de reconhecer a sua culpa imperialista

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Silas Martí

Editor da Ilustrada

São Paulo

O grande drama encenado na cerimônia de abertura das Olimpíadas de Paris foi o rapto da "Mona Lisa" de seus aposentos no Museu do Louvre. De novo, isso porque a tela de Leonardo Da Vinci já foi roubada na vida real e ficou dois anos desaparecida até ser encontrada na Itália de seu criador, escondida numa mala num quarto de hotel.

Visão aérea do Trocadéro, durante a cerimônia de abertura das Olimpíadas de Paris 2024

Seria essa uma metáfora para uma essência da França que se perde em tempos de globalização e ondas migratórias avassaladoras num mundo marcado por guerras? Talvez não precisemos ir tão longe. Toda a festa, debaixo de chuva forte ao longo do rio Sena, misturou as mais profundas raízes da cultura francesa com a realidade do país multiétnico e marcado por tensões de agora. É uma França de filhos de imigrantes, uma nova alegoria, talvez não tão bem acabada, do lema igualdade, liberdade e fraternidade.

Se a "Mona Lisa" sumiu do Louvre, quem deu as caras em réplicas gigantescas saindo da água turva do Sena foram os personagens de outras telas menores do acervo do maior museu do mundo. Uma tentativa de reforçar que, desde os primórdios, Paris era o epicentro da cultura, seja por quem veio por livre arbítrio, seja pelo que foi pilhado de outros continentes em aventuras imperialistas, um mea-culpa exuberante.

Todos desviavam, digamos, dos padrões ocidentais, desviavam da norma. Lá estava o jovem efebo de turbante que encanta um homem mais velho, em nítida celebração do amor queer, de uma tela persa do século 17. Também uma jovem negra de turbante, antes conhecida apenas como "a negra" e depois ganhando o nome de Madeleine, e o perfil da deusa egípcia Hathor, retirada de uma tumba no Egito e hoje no Louvre.

Não espanta que o trajeto dos barcos das delegações, serpenteando pelo coração de Paris, tenha passado por dois museus. Depois do Louvre, o D’Orsay, lar dos impressionistas, que não apareceram na cerimônia, mas nos lembram o poder do patrimônio histórico que os franceses ostentam como belos dentes.

Nada de Manet, Monet, mas muitos clássicos e clássicos obscuros. Dali, embarcamos numa viagem espacial em que esbarramos com o Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry, até que a "Mona Lisa" é encontrada pelos minions de "Meu Malvado Favorito" boiando nas águas do Sena.

Impossível esperar muita coerência de um show feito para agradar a todos, e por isso não agrade a ninguém. O espetáculo, grandioso, é também falho, feito para as câmeras de televisão e talvez ilegível para quem visse ao vivo, já que as partes pré-gravadas, com belas sequências —embora muitas lembrassem o ar publicitário dos comerciais da Air France— costuravam a narrativa.

Lady Gaga, cantando "Mon Truc en Plumes", clássico dos cabarés, em francês, rodeada de muitas plumas, foi um belo cartão de visitas no início do show. Aya Nakamura, uma das artistas mais incensadas da França atual e explícita em seu posicionamento contra o avanço da direita no país —e até por isso alvo da ira de muitos que não a queriam sob os holofotes—, foi deslumbrante ao mesclar suas canções aos clássicos da chanson française de Charles Aznavour.

Música, literatura, artes plásticas, dança, cinema e moda, tudo da cultura francesa deu as caras —a moda em nítido "merchandising" com os baús da Louis Vuitton para armazenar as medalhas olímpicas e depois num desfile com toques de ballroom que virou pista de boate no fim da festa.

Fora do estádio, como estamos acostumados a ver nas Olimpíadas, a festa ganhou as dimensões de uma das grandes metrópoles europeias, abraçou a Île de la Cité e sua catedral de Notre-Dame ainda em restauro depois do incêndio. Mas, apesar da ambição, o impacto se perde ao longo dos quilômetros navegados pelo Sena, uma festa em movimento que vai deixando um rastro de espectadores órfãos pelo caminho.

O esforço de se mostrar plural, a capital do mundo que já foi antes de perder o posto para Nova York, era nítido em Paris. E nítida a mensagem de que essa é uma nova França, um país que por pouco não foi engolido pela avalanche da ultradireita que varre o mundo, um país que ferve no coração de uma Europa em transe. É também um país que se vê diante de um espelho borrado. Seria a Gioconda a cara da França? O efebo persa? A deusa egípcia?

Os pilares dessa essência da identidade francesa parecem embaralhados, e talvez, apesar do show irregular, isso seja o ponto forte do espetáculo exibido ao mundo. Alegorias falham, também porque essas novas alegorias do charme à francesa ainda estão em construção. Estamos diante de alicerces meio frágeis, um discurso um tanto errático, mas que bom que se discuta, talvez com uma boa taça de vinho.

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