Anne Carson atualiza a leitura do amor como uma guerra e baratina leitores
Edição brasileira do bonito 'A Beleza do Marido' tem tradução pouco inspirada e elimina ambiguidades essenciais
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Quase ao fim de "A Beleza do Marido", lemos a descrição de uma batalha na qual os atenienses, no século 5 a.C., tentaram uma ofensiva noturna surpresa contra os siracusanos e se deram mal. Se a originalidade da estratégia começou como trunfo, mais tarde, escreve Anne Carson, "o caos e a desordem se espalharam por tudo" e os que atacavam não mais distinguiam seus inimigos dos próprios pares.
"Foi como uma dança linda efervescente na qual o seu parceiro / vira/ e te esfaqueia até a morte", lemos na aguardada tradução brasileira, que não se mostra à altura do desafio imposto pelo original.
Na passagem, o agora ex-marido está montando um diorama da batalha, que serve como uma metáfora para como ele entende o próprio casamento: duas pessoas arriscando um plano mirabolante, que a esposa se recusa a levar adiante.
Ele ainda quer explicar à mulher "sobre a névoa da guerra e a necessidade de resistência", mas, como um amigo lhe lembra, ela sucumbiu à dor das ausências e infidelidades e "foi pro fundo do poço".
A comparação entre amor e guerra é batida, mas o que Carson faz com ela, não. Parte disso se deve à conversa produtiva que a poeta põe em marcha entre referências à Grécia e à Roma antigas e formulações prosaicas como o fundo do poço do sofrimento amoroso, ou entre a poesia do século 19 e os pronunciamentos do imperador Hirohito.
A costura do repertório amplo e variado, as frases cortadas com pontuação equívoca, as imagens brutais da humilhação, tudo contribui para nos deixar baratinados.
O efeito de atordoamento é ainda mais pertinente quando os textos se voltam aos imperativos do desejo e do amor erótico, temas de boa porção da obra de Carson, incluindo este "A Beleza do Marido" ("The Beauty of the Husband"), de 2001.
Neste, a esposa descreve o momento do arrebatamento como o desabar de um boi após um golpe certeiro e admite: "Sim um clichê/ e eu não peço desculpas porque como eu disse eu não tive culpa,/ eu estava desamparada/ diante da existência/ e a existência depende da beleza".
No livro —composto por uma sequência de 29 poemas, ou tangos, como diz o subtítulo— lemos a história de um casamento com um vício de origem: a mulher está sujeita ao poder do homem, e esse poder reside simplesmente na beleza do sujeito.
Não é só pela sofisticação da forma que Carson dribla, porém, a narrativa banal da esposa apaixonada e traída. Nada de denúncia de relacionamento tóxico aqui.
O marido surge como uma figura da inocência, uma entidade que paira entre o humano e o divino, para quem as palavras seguem regras muito próprias. Se a mulher não tem culpa por se apaixonar, ele tampouco tem responsabilidade pelo efeito que seu corpo produz. "A beleza é a verdade", escreveu o poeta inglês John Keats, a quem o livro de Carson é dedicado.
O casamento não chega ao fim em um gesto de coragem; ele é dançado até se esgotar, como uma batalha em que a recuada não é possível porque não há mais para onde se recuar. Apesar da dor, no entanto, "mantenha a beleza", diz a (ex) esposa na versão brasileira —uma tradução artificial para "hold beauty". Melhor seria escrever: "segura aí a beleza". Afinal, não há alternativa a não ser aceitar os riscos e aguentar o rojão.
Se "A Beleza do Marido" é um livro tão bonito, quem lê esta resenha pode se perguntar, por que então só três estrelas? O problema está na edição brasileira, na qual uma tradução pouco inspirada dá atenção insuficiente à prosódia e elimina ambiguidades essenciais.
É um desperdício prezar pela clareza de sentidos ao se traduzir uma poesia cuja força vem em grande parte do "poder do inexplicável" – expressão da própria Carson. O resultado é complicado ainda pela precariedade da revisão gramatical, e os poemas (tangos!) perdem o ritmo e a contundência. Em uma obra que é um elogio à violência da beleza, o esmero com a forma não deveria ser a primeira vítima.
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