"A mulher incha, encolhe, vaza, é penetrada, sofre metamorfoses." A mulher, na Grécia Antiga, era considerada matéria informe, líquida e móvel e, por isso, incapaz de integrar a sociedade civilizada, cuja marca principal são os limites e fronteiras estabelecidos pelos homens, esses sim, seres dotados de conteúdo e forma.
É em chave classicista-feminista —termo inventado para alguém que reinventa gêneros e classificações— que Anne Carson escreve o primeiro ensaio de "Sobre Aquilo em que Eu Mais Penso", a respeito da "poluição feminina" na Antiguidade.
Mulheres confundem, "derramam-se para fora" em desejo e têm um "útero errante", são sujas e a sujeira é exatamente aquilo que desborda e sobra para além da forma, propriedade masculina.
Integrando conhecimento clássico e erudito, poesia e política e sempre desbordando para fora dos limites previsíveis —desafiando a visão de mundo da Antiguidade, sua especialidade— Carson nos oferece o ensaio naquilo que ele tem de mais verdadeiro: ensaiar.
É por meio de testagens, dúvidas, hesitações e pela colisão criativa de temas supostamente inconciliáveis, como Tucídides e Virginia Woolf, que a poeta/ensaísta/pesquisadora/professora (e nada disso se separa no seu caso) penetra na história da cultura para presentear o leitor com textos que, como as mulheres gregas, encolhem, vazam, penetram e sofrem metamorfoses.
Sobre uma série de ensaios e poemas tão diferentes entre si —sobre o erro, a candura, as mulheres gregas, o sono, o eclipse, Antonioni e Safo— pode-se dizer que algo em comum corre nas entrelinhas: "Por que a verdade não pode ser impossível? Por que o impossível não pode ser verdade?", pergunta que a própria autora se faz no texto sobre Simone Weil, Safo e Marguerite Porette.
Sua busca, tanto em termos temáticos quanto na própria linguagem, é a de fazer ver, por trás de séculos de estereotipia, banalização e limites impostos por homens, a verdade impossível das autoras e obras que interpreta, "o vazio que as coisas têm antes que as tornemos úteis, um lampejo de realidade que precede sua eficácia".
É preciso "beber a lágrima do sono" para ler e compreender Carson e permitir que algo além (ou aquém) da razão eficaz nos toque e "um pouco de alguma coisa incógnita possa atravessar a fronteira entre noite e dia".
Da mesma forma como a autora combina poesia, ensaio, erudição e crítica, ela também reúne reflexões sobre literatura, cinema, pintura e tradução. A sensação, ao terminar a leitura do livro, é a de que, apesar da insistência do mundo em especializar e separar o conhecimento, a circularidade entre os saberes e as linguagens ainda resiste.
Ao comentar a obra do pintor Francis Bacon, por exemplo, Carson diz que o artista não se satisfaz em se esquivar do clichê, mas quer "catastrofizá-lo ali mesmo, em sua tela" e é essa sua "briga", por assim dizer.
A arte, para Anne Carson, é a prática de provocar a catástrofe dos clichês, pegá-los pela orelha e transformá-los em outra coisa: balbucio, sonho e linguagem.
A tradução de Sofia Nestrovski e o trabalho de edição de Danilo HOra em tudo contribuem para que a autora seja lida como deve ser, reembaralhando os fios sensíveis e mentais para reorganizá-los contra o clichê e a favor da reinvenção criativa do mundo.
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