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Bastidores de 'Seinfeld' e ataque racista povoam as memórias do ator de Kramer

Michael Richards resiste à tentação de transformar a autobiografia 'Entrances and Exits' em um acerto de contas

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Mauricio Stycer

Desde os seus primeiros passos como comediante, fazendo o circuito de clubes de stand-up em Los Angeles, Michael Richards incorporou a ideia de que a culpa por um espetáculo ruim nunca é do público. Mas nem sempre ele seguiu o ensinamento à risca.

O ator Michael Richards, que interpretou Cosmo Kramer no seriado 'Seinfeld' - Reuters/Reuters

Certa vez, sem conseguir provocar gargalhadas com seu humor físico e agressivo, ele anunciou que ia se sacrificar pela comédia. E colocou fogo na própria gravata. As chamas já estavam se espalhando pelo casaco quando Jay Leno apareceu no palco para salvá-lo.

Em outra ocasião, Richards mexeu na bolsa de uma espectadora, que começou a gritar, dizendo que os seus remédios sumiram. A casa noturna foi processada e teve que indenizar a mulher. A partir de então, o clube decretou que os comediantes estavam proibidos de tocar nos espectadores.

Mas nenhuma experiência foi tão ruim quanto a ocorrida em 17 de novembro de 2006. Já um comediante consagrado e um ator adorado —pelo personagem Kramer, da sitcom "Seinfeld"—, Richards perdeu o controle durante um espetáculo. Um grupo de pessoas chegou fazendo barulho, ele reclamou e ouviu: "Você não é engraçado". A crítica provocou um ataque de fúria no qual Richards atacou os espectadores com ofensas racistas.

Esse episódio, registrado por um telefone celular, é central na vida e na carreira de Richards, que nunca mais fez nenhum trabalho significativo como ator ou comediante. "Eu não tenho defesa. Eu estraguei tudo", escreve.

No seu recém-lançado livro "Entrances and Exits" (entradas e saídas), um calhamaço de 440 páginas ainda sem previsão de sair no Brasil, o comediante trata do assunto apenas num dos últimos capítulos. Fiel ao mantra do início da carreira, não culpa o público por seu ataque de fúria. E deixa o leitor interpretar por conta própria o que aconteceu.

Richards resiste à tentação de usar o livro de memórias como um acerto de contas. Mas não deixa de pontuar, aqui e ali, episódios que são essenciais na formação da sua personalidade.

O mais duro é a descoberta muito tardia de que sua mãe sempre mentiu sobre a origem de seu pai. Ele nunca sofreu um acidente, como ela dizia. Richards foi fruto de um estupro sofrido pela mãe.

Na escola, gostava de ler Ionesco, Pinter, Beckett e Cummings. Ao falar do período em que serviu o Exército, em Frankfurt, durante a Guerra do Vietnã, Richards enfatiza, em especial, a relação de amizade e cumplicidade com um colega negro.

A todo momento relata experiências místicas e sensoriais variadas que teve, da cabala ao contato com objetos voadores não-identificados. Também não poupa o leitor da longa descrição de seus sonhos.

Mas, dificilmente, alguém vai se aventurar pelas páginas de "Entrances and Exits" em busca de grandes reflexões. O leitor provavelmente está mais interessado em saber dos bastidores de "Seinfeld", e Richards entrega muito.

Ao longo de nove temporadas, num total de 180 episódios (178, na verdade, porque não apareceu em dois), Michael Richards construiu o personagem mais difícil de "Seinfeld". Diferentemente do personagem-título, de George (Jason Alexander) e Elaine (Julia Louis-Dreyfus), que são disfuncionais, mas vivem situações inspiradas na realidade, Kramer é um tipo que beira a loucura.

Como Richards escreve, Kramer é o triunfo da imaginação. Ele constrói realidades paralelas. Talvez seja esquizofrênico. É um personagem que vive das situações que imagina, sem qualquer pé na realidade. "Ele é o que quiser ser."

Na gravação do piloto, Kramer se chamava Kessler e tinha um cachorro. Larry David, cocriador do programa, mandou cortar o cão, porque iria dar muito trabalho. Richards escreve: "Se não posso ter um cachorro, serei um cachorro! Vou interpretar o cara como um cachorro entrando no apartamento de Jerry como fazem os cães brincalhões e amigáveis, um espírito canino saltando pela porta, farejando, curioso, se perguntando o que está acontecendo aqui."

Uma medida do sucesso de Kramer é o Emmy, principal prêmio da indústria de televisão americana. Ao longo das nove temporadas, Richards ganhou como melhor ator coadjuvante em três anos; Louis-Dreyfus, a Elaine, venceu apenas uma vez como atriz coadjuvante, e Alexander, o George, nunca ganhou.

Com um sorriso de malandro, sempre usando roupas fora de moda, cabelo espetado, com ideias de negócios inviáveis e uma personalidade altamente excêntrica, Kramer se tornou um tipo adorado pelos fãs da série. David colocou na boca de Elaine a melhor síntese possível do personagem: "um hipster idiota" ("a hipster doofus").

Certa vez, convocado para participar de um evento promocional do canal NBC, Richards apareceu de roupão. Fez isso porque ficou furioso com o hotel onde estava hospedado, que não buscou o seu smoking na lavanderia a tempo. Todo mundo, porém, achou que era uma piada combinada com a direção.

Após o fim de "Seinfeld", em 2000, a NBC bancou um programa de humor chamado "The Michael Richards Show", no qual ele interpretava um detetive particular inepto, mas o fracasso foi pesado. O canal cancelou a série após oito episódios.

Em 2002, Richards foi convidado para ser o protagonista da série "Monk", mas recusou, e o papel acabou com Tony Shalhoub —que brilhou no papel do detetive com TOC por oito temporadas.

Richards ganhou muito dinheiro com "Seinfeld" —na última temporada, de 24 episódios, os três atores principais pediram 1 milhão de dólares por episódio. Casado duas vezes, pai de dois filhos, ele fala de si mesmo como um aposentado.

O livro ganha um tom melancólico na reta final. Richards relata em detalhes a descoberta de um câncer de próstata e a cirurgia bem-sucedida que se seguiu. Nos últimos anos, se dedicou basicamente à fotografia. Para sempre, será Kramer.

Entrances and Exits

  • Preço US$ 35 (importado, 440 págs.), US$ 15,99 (ebook)
  • Autoria Michael Richards
  • Editora Simon & Schuster

Sete episódios para entender e rir com Kramer

Para quem não conhece, os 180 episódios das nove temporadas de “Seinfeld” merecem ser vistos em sequência. É a melhor forma de entender o sucesso da série e ver como ela foi se transformando. Disponível na Netflix desde 2022, a sitcom permanece engraçada, ainda que nem sempre atual.

  • "A Vingança" (temporada 2, episódio 7)

    Já na segunda temporada, esse episódio mostra Kramer fora do apartamento, ajudando Seinfeld a se vingar do dono de uma lavanderia.

  • "O Estacionamento" (temporada 3, episódio 6)

    O episódio gira basicamente em torno do quarteto num estacionamento de shopping, sem achar o local onde deixaram o carro. Para dar mais realismo, Richards pediu que colocassem algum peso na caixa que carrega ao longo de toda a história.

  • "O Metrô" (temporada 3, episódio 13)

    Cada integrante do quarteto vive uma história diferente dentro do metrô. O episódio mostra como Kramer já não é mais apenas o vizinho de porta de Seinfeld.

  • "A Cutucada" (temporada 4, episódio 13)

    "The Pick" já um fenômeno cultural, na quarta temporada Kramer contracena com o estilista Calvin Klein, a quem acusa de plagiar uma ideia de perfume sua. Em troca, o estilista oferece um trabalho de modelo para Kramer.

  • "A Circuncisão" (temporada 5, episódio 5)

    Os quatro protagonistas participam de uma cerimônia de circuncisão de um menino judeu. Kramer tenta convencer os pais do garoto a desistirem da ideia. É desses episódios de chorar de rir.

  • "A Conversão" (temporada 5, episódio 11)

    Neste episódio antológico, Kramer descobre que tem “kavorka”. Ele provoca uma atração animal sobre as mulheres.

  • "O Jimmy" (temporada 6, episódio 19)

    Politicamente incorreto, nesse episódio Kramer toma anestesia em excesso no dentista e é confundido com uma pessoa com problemas mentais. Contracena com o cantor Mel Tormé.

Mauricio Stycer

Jornalista e crítico de TV, autor de "O Homem do Sapato Branco". É mestre em sociologia pela USP.

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