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James Baldwin lembra que história dos Estados Unidos é a dos negros

Escritor, agora em seu centenário, cobrava de brancos e pretos a ousadia para superar racismo com urgência quase apocalíptica

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Thiago Amparo

Colunista da Folha, é professor na FGV Direito SP, onde coordena o Núcleo de Justiça Racial e Direito, e foi professor visitante na Universidade de Columbia

Qualquer pessoa que tente compreender a questão racial na obra de James Baldwin não deve correr o risco de reduzir o autor a apenas isso.

Não é à toa que o documentário a respeito das 30 páginas de anotações de Baldwin em seu diário sobre três líderes do movimento por direitos civis nos Estados Unidos —Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King Jr.— se chama "Eu Não Sou Seu Negro".

O escritor James Baldwin em 1973 - NYT

A frase-título captura bem o espírito de um escritor que não via a história dos afro-americanos como separada da história dos Estados Unidos. Para Baldwin, o fato de habitarmos o mesmo barco não o torna mais tolerável, e sim mais revoltante.

Está aí a primeira característica central da escrita de Baldwin quando vista a partir da lente racial: a noção de convivialidade entre pessoas negras e brancas nos EUA. Não existem dois Estados Unidos, apesar de a segregação de outrora e a desigualdade de hoje imporem percepções de realidades distintas.

Para o autor, o racismo é tão perverso que faz esquecer que o mundo de privilégios propiciado pela branquitude —tão onipresente quanto invisível a olhos nus— não está apartado do mundo de opressão racial. É, na verdade, o mesmo mundo.

"Não esqueçamos que oprimido e opressor estão unidos no interior de uma mesma sociedade", escreveu Baldwin em "Notas de um Filho Nativo", coletânea publicada no Brasil pela Companhia das Letras em 2020 a partir da série de ensaios original de 1955.

O autor era obcecado em desmascarar o mito da superioridade de pessoas brancas, apontando a humanidade comum entre negros e brancos, não suas diferenças. "A história do negro nos Estados Unidos é a história dos Estados Unidos", lembra no ensaio "Muitos Milhares de Mortos".

Outro ponto central em Baldwin é a noção de autoconsciência racial. "Ele não era o preto de ninguém. E isso é um crime na porra deste país livre", escreve Baldwin sobre Fonny, o jovem negro abordado de forma violenta por um policial no romance "Se a Rua Beale Falasse", originalmente publicado em 1974.

"Supõe-se que você seja o preto de alguém. E se você não for o preto de alguém, então você é um preto mau: e foi isso que os policiais decidiram quando o Fonny se mudou para downtown", complementa.

O racismo é tão sagaz que triunfa na "capacidade de convencer as pessoas a quem ela atribui um status inferior de que essa inferioridade é real", mesmo quando isso não passa de uma ilusão, lembra Baldwin.

O antirracismo de Baldwin é poderoso porque não depende da identidade do interlocutor. "Eu não sei o que a maioria das pessoas brancas neste país sente. Mas só posso concluir o que elas sentem pelo estado de suas instituições", disse o escritor em um programa de entrevista em 1968.

O intelectual está menos preocupado em sentimentos de culpa ou de autodefinição racial, e mais no estado desigual das instituições econômicas, sociais e culturais. Nisto, parece antecipar o debate que se tem hoje sobre reparação.

"Deixe-me colocar desta forma: de um ponto de vista muito literal, os portos e as ferrovias do país; a economia, especialmente dos estados do Sul, não poderia ser o que se tornou se eles não tivessem tido, e ainda têm, na verdade, e por tanto tempo —tantas gerações —mão de obra barata", disse em um famoso debate na Universidade de Cambridge em 1965, um ano após a promulgação da Lei dos Direitos Civis nos EUA.

Ao creditar a riqueza da potência americana ao trabalho precarizado de pessoas negras, Baldwin cobra a dívida impagável do racismo como sistema de poder econômico por meio do acúmulo de riqueza.

Baldwin não queria ser lido como um escritor de protesto, no entanto. Não acreditava nisso. Não porque não quisesse o protesto, pelo contrário, mas porque entendia que o romance de protesto —feito de forma caricata, maniqueísta, sem atribuir responsabilidade efetiva —desumaniza justamente aqueles a quem buscava encontrar um lugar.

"O romance de protesto fracassa por rejeitar a vida, o ser humano, por negar sua beleza, seu pavor, seu poder, ao insistir que apenas sua categorização é real e não pode ser transcendida", escreveu no ensaio "O Romance de Protesto de Todos".

O que resta a fazer, afinal? Baldwin, de um lado, permite sentir raiva. "Não há um negro vivo que não tenha essa raiva no sangue —as duas únicas opções são conviver com ela de modo consciente ou entregar-se a ela", escreveu no ensaio "Notas de um Filho Nativo".

De outro, Baldwin, nos impõe —a brancos e a negros, igualmente— um dever quase apocalíptico: ou "ousamos tudo agora" ou sobre nossas cabeças cumprirá a profecia feita a Noé. "Não mais água, da próxima vez, o fogo!"

Eu Não Sou Seu Negro

Avaliação:
  • Produção: EUA, Suíça, França, Bélgica, 2016
  • Direção: Raoul Peck
  • Roteiro: James Baldwin

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