Aos 22 anos, Amanda Gorman sacudiu os Estados Unidos. Selecionada para declamar seu poema "O Monte que Escalamos" na posse do presidente Joe Biden em janeiro de 2021, ela encarnou a esperança de reconstrução democrática com a musicalidade de seus versos.
Agora, dois livros dela chegam ao Brasil. O primeiro consiste no poema daquela cerimônia, as palavras que atravessaram as telas das televisões e celulares: um poema longo, inebriado pelo orgulho patriota do seu país.
Gorman não cobra, não demanda nada do futuro, se reserva apenas a celebrar a mudança de governo em um otimismo que beira a ingenuidade. No momento mais inspirado do poema, afirma que as nossas falhas serão o fardo da próxima geração.
O segundo livro, "Seremos Chamados pelo que Levamos", lançado no ano seguinte, se debruça sobre os anos Trump, especialmente a pandemia e o assassinato de Breonna Taylor e George Floyd.
Ao longo de mais de 200 páginas, fica evidente sua virtude como escritora de bons versos, mas os poemas logo se tornam repetitivos e esquecíveis. O livro é dividido em sete partes, mas as ideias-chave de cada uma se repetem tanto que é difícil entender o motivo dessa organização.
Ao fim, parece haver vários projetos de livros dentro de "Seremos Chamados pelo que Levamos", mas nenhum deles devidamente finalizado.
Um exemplo disso, talvez o mais interessante, é o eixo temático sobre a Covid em diálogo com outras epidemias. Gorman realiza um trabalho de pesquisa e intervenção poética em cartas de enfermeiras, soldados e trabalhadores de funerárias que datam de 1918, época da gripe espanhola.
Da Agência Indígena de Yamaka ao Arquivo Nacional, Gorman resgata esses documentos e os justapõe entre seus poemas, localizando o texto historicamente com uma indicação no rodapé. Justamente por vir sem aviso, a investida gera um profundo desconforto: o horror é estranhamente familiar e, ainda que com cem anos de diferença, a sobrevivência continua a cobrar caro.
Gorman intervém no material, quebra os textos em versos, deixa a nota de rodapé e segue para outra proposta em outra seção do livro —um balde de água fria no leitor. A sensação é que faltou tempo e caneta dedicados ao desconforto e à matéria subjetiva de quem sobreviveu à pandemia, além de um aproveitamento maior de sua pesquisa.
O trunfo do livro é a sexta parte, intitulada "Fúria e Fé", com poemas como "América" e "A Verdade em uma Nação", em que Gorman abre espaço para sua indignação, pela primeira vez sem ressalvas e dispensando uma romantização do pertencimento ao país. Nesse momento, as páginas sangram em poemas longos, especialidade da autora, em um estado de revolta com o racismo nos Estados Unidos.
Ainda que atravesse o livro, o racismo é pontuado em contraste com o amor patriota da autora. E, curiosamente, há poucos poemas em que Gorman examina esse amor, esse sentimento de construção, orgulho e pertencimento aos Estados Unidos, de forma que é difícil entender que fé é essa que freia a sua fúria.
No final do livro, há ainda a desastrosa e maçante inserção de uma espécie de jornada do herói, em que Gorman celebra a vitória de Biden, as vacinas, a retirada das tropas do Afeganistão. Para uma edição lançada em 2024, resta a amarga ironia do subsídio ao genocídio palestino em Gaza.
No geral, a falta de profundidade nas contradições e a extensão do livro ofuscam o que há de melhor em Gorman: a pesquisa sobre os efeitos da pandemia e a musicalidade dos seus poemas longos.
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