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'Filho Nativo' é romance existencialista bem mais forte que 'O Estrangeiro'

Assim como Camus, Richard Wright criou uma das grandes obras filosóficas da literatura, mas foi escanteado pelo racismo

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Alex Castro

Escritor, é autor de 'Atenção.' e 'Mentiras Reunidas'

Filho Nativo

  • Preço R$ 119,90 (504 págs.); R$ 49,90 (ebook)
  • Autoria Richard Wright
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Fernanda Silva e Sousa

"Filho Nativo", escrito por Richard Wright em 1940 e relançado agora pela Companhia das Letras, é um dos grandes romances filosóficos da literatura. O fato de ser raramente pensado assim é sintoma do nosso racismo estrutural.

Sua obra anterior tinha sido um livro de histórias infantis chamado "As Crianças do Pai Tomás", dialogando com o romance abolicionista "A Cabana do Pai Tomás". "Cometi um erro terrivelmente ingênuo", disse Wright, sobre a obra. "Eu tinha escrito um livro que uma filha de banqueiro podia ler, chorar e depois se sentir melhor."

foto em preto e branco de homem negro que veste terno sentado em frente a estante de livros
O autor Richard Wright, que escreveu o livro 'Filho Nativo' em 1940 - Gordon Parks/Divulgação

O autor diz ter prometido a si mesmo que, "se escrevesse outro livro, ninguém choraria". "Ele seria tão duro e tão profundo que o teriam de encarar sem o consolo das lágrimas." Seu livro seguinte foi "Filho Nativo".

Na primeira parte, "Medo", conhecemos Bigger Thomas, jovem negro que ganha a vida com pequenos roubos. Contratado para ser motorista da família branca mais rica da cidade, acaba matando a filha do patrão.

Na segunda parte, "Voo", o romance assume os contornos de "Crime e Castigo", de Dostoiévski. Raskólnikov às avessas, Bigger comete o assassinato não por se considerar super-homem, mas sim sub-humano. Na tentativa de retomar alguma sensação de poder sobre a própria vida, Bigger acaba estuprando e matando sua própria namorada.

Finalmente, na terceira parte, "Destino", ele é preso e julgado. O romance termina de forma parecida com "O Estrangeiro", de Albert Camus, lançado dois anos depois.

Depois de "Filho Nativo", Wright escreveu o autobiográfico "Black Boy", sobre sua infância no mundo racista do sul dos Estados Unidos. Rapidamente alçado à condição de "autor negro mais famoso do mundo", ele se mudou para a França em 1947, onde morou até morrer, de ataque cardíaco, em 1960, ainda jovem, aos 52 anos.

Na Europa, sua produção sobre novos temas foi ignorada. Era como se o público dissesse "lamba os beiços por querermos saber suas vivências de menino negro". "Não tenha a presunção de achar que vamos ler suas opiniões sobre filosofia continental!"

Em "O Atlântico Negro", clássico dos estudos culturais de 1993, Paul Gilroy nos desafia a conhecer também o Wright europeu, engajado nos grandes temas de sua época, como existencialismo e anticolonialismo. Afinal, pode o subalterno falar de algo que não seja sua própria subalternidade?

Wright não só dialogou com os filósofos europeus, mas também os influenciou. Por exemplo, uma das grandes inovações de "O Segundo Sexo", que Simone de Beauvoir lançou em 1949, é comparar opressão racial e gênero –método inspirado não só por sua leitura de "Filho Nativo" mas também por sua vivência com Wright, com quem viajou pelos Estados Unidos.

Nas obras, Beauvoir e Wright traçam os limites que a sociedade machista e racista impõe à liberdade de mulheres e pessoas negras. Ela comenta ter ficado comovida por um trecho de "Filho Nativo", quando Bigger vê um avião no céu e percebe que nunca terá a oportunidade de pilotar.

Segundo a filósofa, essa também é a experiência feminina —olhar em volta e lamentar tudo o que nunca se terá a possibilidade de fazer. Como pode ser livre e potente a pessoa que internalizou os preconceitos limitantes que a sociedade projeta sobre ela?

Quando um homem branco como Camus fala de si mesmo, consideramos que está falando da condição humana de modo geral. Já a pessoa subalterna, seja negra, mulher, gay et cetera, recebe sempre o rótulo de "identitária".

Por isso, "O Estrangeiro" é lido como um romance existencialista e "Filho Nativo", que elaborou os mesmos temas de forma ainda mais potente, como "apenas" um romance sobre a condição negra.

Mas, nas palavras de Gilroy, não é que Wright se esforçasse para validar a experiência afro-americana em termos europeus, mas, pelo contrário, demonstrava como essa experiência permitiu a ele enxergar com clareza "a mesma constelação de problemas que esses autores existencialistas haviam identificado em contextos mais sublimes".

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