Por uma produção de conhecimento que espelhe as diversidades

Especialistas apresentam o Mecila, centro de pesquisa cooperativa que se afasta de hierarquias

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Marcos Nobre Sérgio Costa

[RESUMO]  O texto apresenta o tema da mesa 7 ("Debates políticos do espaço público") do seminário de 50 anos do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).

A convivência em sociedades complexas e plurais é mote fundante e recorrente das ciências humanas e sociais modernas. O tema, que na verdade nunca saiu da agenda política, tornou-se ainda mais urgente e crucial neste momento em que a direita radical é levada ao poder em alguns países não por propor formas mais adequadas de convivência plural, mas por alimentar sua impossibilidade. 

O repertório de conceitos mobilizados para discutir a questão é vastíssimo: coesão social, solidariedade, coexistência, “buen vivir” servem aqui de exemplo. Nos debates atuais, o termo convivialidade (conviviality) é cada vez mais presente. Foi introduzido nas ciências humanas por Ivan Illich, em 1973.

Na ocasião, Illich dirigia o Centro Intercultural de Documentación, no México, um espaço ecumênico e plural para o qual convergiam os ideais de solidariedade global da esquerda latino-americana e os valores libertários do então pensamento crítico europeu.

Desde então, os estudos sobre convivialidade disseminaram-se por várias disciplinas e campos temáticos. Isto explica a atual compreensão polissêmica do termo. Podem ser identificados quatro campos no âmbito dos quais os estudos sobre o tema vêm se desenvolvendo de forma particularmente profícua.

O primeiro é a crítica ao antropocentrismo e ao sociocentrismo: nestes estudos, convivialidade substitui o conceito sociológico de sociedade, de forma a integrar na análise, além de pessoas, também atores não humanos como animais, plantas, espíritos e artefatos.

Esta abordagem encontra-se bem desenvolvida nos estudos sobre a sociabilidade indígena na Amazônia e, no campo legal, já passou ao direito positivo, ao menos no Equador, cuja Constituição assegura direitos à natureza.

Ilustração para Ilustríssima
Ilustração - Daniel Bueno

A seguir, a crítica ao utilitarismo: convivialidade, aliás convivialismo, expressa aqui a compreensão de que as relações sociais, mesmo as mais competitivas, encontram-se fundadas na cooperação e na dádiva. Desenvolvida na França por sociólogos antiutilitaristas e por economistas vinculados ao movimento anticrescimento décroissance, essa interpretação encontra-se, hoje, já bastante difundida no Brasil.

Depois, a crítica à identidade cultural: convivialidade alude aqui a um conceito relacional de cultura, segundo o qual culturas não se definem por repertórios, mas pela negociação dinâmica de diferenças. No contexto europeu, têm-se insistido no potencial da convivialidade como antídoto analítico e político à reificação da identidade cultural promovida tanto por nacionalistas quanto pelo multiculturalismo liberal. 

 
Na América Latina, esta noção dinâmica de cultura que desarma a dicotomia “nós versus o outro” encontra-se desenvolvida na sólida antropologia da região e em parte importante da literatura e da crítica literária, particularmente do Caribe francês, como testemunham conceitos como “identité-relation” e “créolisation”, cunhados por Édouard Glissant.
 

Por fim, a crítica à colonialidade: esta vertente explora o papel da convivialidade, entendida aqui no âmbito das relações de proximidade física e/ou afetiva, para a manutenção das hierarquias (pós)coloniais. Desenvolvida pelo cientista político camaronês Achille Mbembe, esta abordagem já se reflete em estudos sobre trabalho doméstico e na historiografia sobre a escravidão.

Desenvolvidos nesses vários campos temáticos, os estudos sobre convivialidade oferecem uma plataforma promissora para a cooperação interdisciplinar no campo das humanidades, dos estudos culturais e das ciências sociais.

Isto é, na medida em que as disciplinas convencionais, com seus nacionalismos institucionais e metodológicos e suas distinções rígidas entre cultura e natureza, virtual e real, humano e não humano, mostram limites óbvios para analisar relações de interdependência mais complexas, os estudos sobre convivialidade emergem como aposta em teorias menos reducionistas e em métodos relacionais.

Ao menos é essa a expectativa alimentada pelos pesquisadores reunidos em torno da criação do Maria Sibylla Merian International Centre Conviviality‑Inequality in Latin America (ou, mais abreviadamente, Mecila), sediado em São Paulo. 

Financiado principalmente pelo governo alemão e reunindo pesquisadores de quatro instituições latino-americanas e três alemãs —a saber, Universidade de São Paulo, Cebrap, Colégio de México, Universidade Nacional de La Plata, FU Berlin, Universidade de Colônia e Instituto Ibero-Americano—, o projeto visa criar um ambiente intelectual privilegiado para a reflexão interdisciplinar, a partir da América Latina.

Essa iniciativa do governo alemão inclui a criação de Centros Merian em diferentes cidades do sul global, entre elas Acra (Gana), Déli (Índia), Guadalajara (México) e Pequim (China).

Ilustração para Ilustríssima
Ilustração - Daniel Bueno

Não há muitos exemplos de instituições que estudaram, de forma integrada, experiências sociais latino-americanas, traduzindo-as em termos teóricos. O caso mais conhecido é o da Cepal, Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, criada em 1948 e que, por várias décadas, articulou a reflexão teórica sobre desenvolvimento na região. 

Hoje, é mais provável que esforço semelhante seja mais exitoso quando empreendido não por uma única instituição, mas por uma rede internacional de pesquisa capaz de refletir a multiplicidade das experiências sociais e da reflexão intelectual presente na América Latina. 

Deve incluir também novos formatos de cooperação capazes de mitigar as hierarquias regionais, geracionais, étnicas, de classe e de gênero que marcam a produção e circulação do conhecimento.

É o que pretende o novo centro em construção, o Mecila. Para seus propósitos muito abertos, convivialidade é o nome das constelações estruturadas por desigualdade e diferenças. Isto significa que cooperação, conflito, violência e dominação estruturam padrões de convivialidade.

No projeto Mecila, convivialidade nomeia menos o ponto de partida e muito mais os achados de pesquisa que podem emergir quando se vislumbra a realidade a partir dessas constelações. Menos que um conceito e longe de ser uma teoria ou um método, convivialidade refere-se à abordagem em permanente estado de construção.


Marcos Nobre é professor de filosofia na Unicamp e pesquisador sênior do Cebrap .

Sérgio Costa é professor de sociologia e diretor do Instituto de Estudos Latino-Americanos da FU Berlin (Alemanha). Ambos dirigem a implementação do Centro Mecila em São Paulo. Aqui apresentam o tema da Mesa 7 do seminário de 50 anos do Cebrap.

Seminário sobre democracia celebra 50 anos do Cebrap 

Fundado em 3 de maio de 1969, o Cebrap promove o seminário internacional Democracia à Brasileira para comemorar suas cinco décadas de atividade. Pesquisadores renomados que passaram ou ainda integram o instituto discutirão as turbulências políticas atuais. Os debates ocorrerão no auditório do Sesc Vila Mariana (r. Pelotas, 141). Inscrições podem ser realizadas pelo site do Sesc. Ingressos custam de R$ 9 a R$ 30. 

14.mai (terça)
 

19h - Abertura
Danilo Miranda (diretor do Sesc/SP) e Angela Alonso (presidente do Cebrap)

19h20 - Vídeo Cebrap – 50 anos pensando o Brasil

19h45 - Mesa 1 - Democracia em crise?
Mediação: Maria Hermínia Tavares de Almeida (Cebrap/USP)
Conferencista: Adam Przeworski (NYU)

15.mai (quarta)
 

10h - Mesa 2 - Instituições políticas brasileiras
Mediação? Miriam Dolhnikoff (Cebrap/USP)
Debatedores: Fernando Limongi (Cebrap/USP/FGV), Argelina Figueiredo (Cebrap/IESP) e Maria Hermínia Tavares de Almeida (Cebrap/USP)

14h - Mesa 3 - Mobilizações sociais
Mediação: Arilson Favareto (Cebrap/UFABC)
Debatedores: Daniel Cefaï (EHESS), Angela Alonso (Cebrap/USP) e Adrian Lavalle (Cebrap/USP)

16h30 - Mesa 4 - Desenvolvimento, trabalho e políticas públicas
Mediação: Carlos Torres Freire (Cebrap)
Debatedores: Elisabeth Reynolds (MIT), Glauco Arbix (Cebrap/USP) e Alvaro Comin (Cebrap/USP)

16.mai (quinta)
 

10h Mesa 5 - Desigualdades
Mediação: Marcia Lima (Cebrap/USP)
Debatedores: Pablo Beramendi (Duke University), Marta Arretche (Cebrap/USP) e Marcelo Medeiros (Ipea)

14h - Mesa 6 - Religião, política e espaço público
Mediação: Mauricio Fiore (Cebrap)
Debatedores: Juan Vaggione (Conicet), Paula Montero (Cebrap/USP) e Ronaldo Almeida (Cebrap/Unicamp)

16h30 - Mesa 7 - Debates políticos do espaço público
Mediação: Marta Machado (Cebrap/FGV)
Debatedores: Magali Bessone (Paris I), Marcos Nobre (Cebrap/Unicamp) e Sergio Costa (Cebrap/Universidade Livre de Berlim/Mecila)

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