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Descrição de chapéu Memorabilia

Dom Quixote ensina a lutar contra injustiças e preconceitos, diz Tostão

'Tenho em casa coleção de miniaturas de meus ídolos e o maior deles é o cavaleiro da triste figura', afirma ex-jogador

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Tostão

Foi na adolescência que escutei falar pela primeira vez de "Dom Quixote", escrito por Miguel de Cervantes no século 17 e considerado o primeiro romance moderno.

Eu era um jovem sonhador, romântico, que queria mudar o mundo. E fiquei bastante impressionado com o cavaleiro da triste figura, o herói louco, paranoico, que lutava contra as injustiças, delirava e via em tudo um inimigo imaginário.

Aos 16 anos, eu já era titular da equipe principal do Cruzeiro e levei os dois volumes do livro para ler na concentração.

Da esq. para a dir., os jogadores Gerson, Pelé e Tostão, em foto de 1969. - Folhapress

Os companheiros me achavam esquisito por gostar de ficar lendo no quarto enquanto os outros se divertiam na sinuca, no totó, nos jogos de baralho e nas brincadeiras. Mas isso não me tornava um recluso: me dava bem com todos e me enturmava; havia tempo para tudo.

Achei o romance confuso, estranho, bastante diferente de tudo o que conhecia. Não sabia se era um livro de humor, uma coletânea de contos, uma obra para crianças ou para adultos, um tratado de psicologia ou de filosofia. Com o tempo, percebi que era tudo isso.

Parei de jogar aos 26, em 1973, por causa de problemas no olho e, dois anos depois, entrei na faculdade de medicina, tornando-me médico em 1981. Nessa época, li novamente o livro e fiquei fascinado.

Interessavam-me muito os conflitos emocionais das pessoas e tinha enorme curiosidade quanto às fronteiras entre realidade e ficção. Durante meu trabalho como médico, estudei psicossomática e psicanálise. Quase troquei a medicina pela psicanálise.

Numa das poucas aulas de psiquiatria que tive, o professor citou Dom Quixote como um exemplo de doente mental, com delírios e visões fora da realidade e outros sintomas típicos de um esquizofrênico.

Na psiquiatria, chamam de "borderline" as pessoas que têm uma estrutura psicológica limítrofe entre a realidade e a ficção, mas que são consideradas normais, pois nunca surtaram, tiveram sintomas delirantes ou visões estranhas em estado de vigília. É interessante que, quando Miguel de Cervantes escreveu o livro, não existia nenhum tratado de psiquiatria.

Os diálogos entre Dom Quixote e Sancho Pança são sensacionais. Um não entendia o outro. Quem era mais lúcido? Há controvérsias.

Peter O'Toole como Dom Quixote e James Coco como Sancho Pança em "O Homem de la Mancha" (1972) - Reprodução

Dom Quixote foi imaginado como um homem alto, magro, longilíneo, características morfológicas mais comuns nas pessoas esquizofrênicas. Já Sancho Pança, o fiel escudeiro do protagonista, é descrito como um homem baixo, gordo, atarracado, características mais frequentes em pessoas excessivamente operatórias, utilitaristas, apegadas à racionalidade e à realidade.

Anos depois, assisti ao filme "O Homem de la Mancha" (1972), um espetacular musical que revi várias vezes, com Peter O'Toole no papel de Quixote e Sophia Loren como Dulcinéia, seu amor platônico. O protagonista só podia ser O'Toole, com seu talento e tipo físico: alto, magro e longilíneo.

A música, pano de fundo do filme, é magistral. "The Impossible Dream" foi composta por Joe Darion e Mitch Leigh, em 1965, para o musical de mesmo nome da Broadway. Depois a canção foi gravada, em português, por Maria Bethânia.

Em uma determinada cena, Dom Quixote, hospedado em uma pensão junto com Sancho Pança e seu cavalo Rocinante, fica irritado com o desprezo e as brincadeiras sobre seu mundo imaginário. Atormentado, ele canta em voz alta a belíssima canção: "Sonhar mais um sonho impossível, lutar quando é fácil ceder, vencer o inimigo invencível, negar quando a regra é vender...".

Tenho em casa uma coleção de miniaturas de pessoas e personagens que admiro, meus ídolos.

O maior deles é Dom Quixote, o cavaleiro da triste figura, de quem possuo também uma estatueta, com espada e escudo.

Com o passar do tempo, entendi que o personagem é muito mais que um louco sonhador. A obra é um ensinamento sobre como é possível, sem deixar de respeitar as regras e as leis criadas pela civilização, lutar diariamente, nas pequenas e grandes coisas, contra as injustiças, a intolerância, os preconceitos, sem abdicar e sem negar a ambiguidade, as fraquezas, as ambições, os desejos e os delírios do ser humano. 


Tostão, colunista da Folha, médico e ex-jogador de futebol, participou da conquista da Copa de 1970.

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