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Música anuncia golpe de Estado em romance de convidado da Flip

'Meu Pequeno País' é obra de teor autobiográfico de escritor rapper nascido no Burundi

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Gaël Faye

[SOBRE O TEXTO] O trecho abaixo faz parte do romance “Meu Pequeno País”, cujo autor, compositor e rapper, é um dos convidados da próxima Flip. De tom autobiográfico, o livro narra a rotina de um menino de dez anos em meio a traumas familiares e históricos, como o genocídio em Ruanda. O livro sai no Brasil no começo de junho, pela editora Rádio Londres.

Ilustração - Rodrigo Visca

Eu dormia um sono leve quando senti alguma coisa encostar na minha cabeça. A princípio, pensei que fossem ratos que roíam os cachos de meus cabelos, como acontecia antes de Papai instalar armadilhas pela casa toda. Depois, ouvi um sussurro: “Gaby, está dormindo?”. A voz de Ana me acordou de vez. Abri os olhos. Nosso quarto estava mergulhado em escuridão. Com a mão esquerda, puxei a cortina. Um raio de lua atravessou o mosquiteiro da janela, iluminando o rosto apavorado da minha irmãzinha. “Gaby, que barulho é esse?” Não entendia. A noite estava calma. Reconhecia apenas os pios da coruja instalada no forro do teto em cima de nosso quarto. Fiquei sentado e esperei até ouvir vários ruídos secos ressoarem uns atrás dos outros. “Parecem tiros...” Ana enfiou-se na minha cama para se enroscar em mim. Um silêncio angustiante sucedia os estrondos de explosões e os tiros de metralhadora. Ana e eu estávamos sozinhos em casa. Papai dormia fora com frequência já fazia um tempo; Innocent dizia que ele saía com uma jovem que morava na rua atrás da casa dele, no bairro popular de Bwiza. Isso me entristecia, pois, desde que Mamãe e Papai voltaram a se falar, eu tinha esperança de que ficassem juntos.

Apertei o botão que iluminava meu relógio. O mostrador marcava duas horas da manhã. A cada explosão, Ana colava-se um pouco mais em mim.

— O que está acontecendo, Gaby?
— Não sei...

Os tiros cessaram por volta das seis da manhã. Papai ainda não tinha voltado. Nós nos levantamos, nos vestimos e depois arrumamos nossas pastas. Prothé também não tinha chegado. Tínhamos posto a mesa para o café da manhã na varanda. Preparei o chá. O papagaio dava cambalhotas dentro da gaiola. Procurei alguém lá fora. Não tinha vivalma. Até o zamu tinha desaparecido. Depois de comer, tiramos a mesa.

Ajudei Ana a se pentear. Ainda não havia ninguém em casa. Eu espreitava o portão; era a hora em que os empregados deviam chegar. Mas tudo permanecia parado. Sentamos nos degraus da entrada para esperar a chegada de Innocent ou de Papai. Ana tirou seu caderno de matemática da pasta e começou a recitar a tabuada de multiplicar. Na rua, na frente de casa, nem pedestres nem carros. O que estava acontecendo? Onde andava todo mundo? Ouvimos um trecho de música clássica na vizinhança. Era quinta-feira, mas o bairro estava mais calmo que nos domingos de manhã.

Finalmente, um carro se aproximou. Reconheci a buzina do Pajero e corri para abrir o portão. Papai estava com olheiras e sério. Desceu do carro e perguntou se estávamos bem. Fiz que sim com a cabeça, mas Ana emburrou a cara, com raiva por ele nos ter deixado sozinhos a noite toda. Papai caminhou apressado até a sala e ligou o rádio. Ouvimos a mesma música clássica de lá de fora. Ele colocou a mão na testa repetindo: “Merda! Merda! Merda!”.

Mais tarde, soube que era tradição tocar música clássica na rádio quando havia um golpe de Estado. No dia 28 de novembro de 1966, no golpe de Estado de Michel Micombero, tinha sido a “Sonata para Piano n° 21” de Schubert; no dia 9 de novembro de 1976, no de Jean-Baptiste Bagaza, a “Sinfonia n° 7” de Beethoven; e no dia 3 de setembro de 1987, no de Pierre Buyoya, “O Bolero Opus 19” de Chopin.

Naquele dia, 21 de outubro de 1993, tivemos direito ao “Crepúsculo dos Deuses”, de Wagner. Papai trancou o portão com uma corrente grossa e vários cadeados. Mandou não sairmos de casa e nos mantermos afastados das janelas. Depois instalou nossos colchões no corredor, para evitar o risco de balas perdidas. Passamos o dia inteiro deitados no chão. Foi até engraçado, a impressão era de acampar em nossa própria casa.

Como de costume, Papai trancou-se no quarto para dar alguns telefonemas. Por volta das três da tarde, eu jogava cartas com Ana, e Papai estava ao telefone no quarto, quando ouvi arranharem a porta da cozinha. Fui ver quem era, discretamente. Gino, esbaforido, esperava atrás das grades e eu sussurrei:

— Não posso abrir, meu pai trancou a casa toda com duas voltas. Como você entrou?
— Pulei a cerca. De qualquer jeito, não vou ficar muito tempo. Já está sabendo?
— É, já sei, teve um golpe de Estado, nós ouvimos a música clássica.
— Os militares mataram o novo presidente.
— O quê? Não acredito... Jura?
— Juro. Um jornalista canadense ligou para o meu pai e contou. Foi um golpe dos militares. Também mataram o presidente da Assembleia Nacional e outros chefões do governo... Parece que os massacres já começaram por todo o interior do país. E, depois, sabe da melhor?
— Não. Tem mais o quê?
— Attila fugiu.
— Attila, o cavalo dos van GÖtzen?
— Isso! Loucura, né? À noite, uma granada caiu perto das estrebarias da Sociedade Hípica, atrás da residência presidencial. Uma construção pegou fogo. Os cavalos entraram em pânico, o Attila pirou, empinava e relinchava como um doido, começou a dar coices na porta da baia, arrebentou o ferrolho e depois saltou as barreiras antes de desaparecer na cidade. Você precisava ver a sra. von GÖtzen hoje de manhã... Ela chegou à nossa casa de camisola, bobes no cabelo e os olhos inchados de tanto chorar. Tão engraçado! Ela queria que meu pai usasse seus contatos para encontrar o cavalo. E meu pai não parava de repetir: “Senhora von GÖtzen, houve um golpe de Estado, eu não posso ajudar em nada, nem mesmo o presidente da República pôde fazer nada por si mesmo”. E ela, ah, ela não parava de insistir: “É preciso encontrar o Attila! Entre em contato com as Nações Unidas! Com a Casa Branca! Com o Kremlin!”. Aquela velha racista não dava a mínima para o assassinato do presidente, só queria saber do seu pangaré. Esses colonizadores me matam! A vida dos animais deles é mais importante que a dos humanos. Bom, agora tchau, Gaby, preciso me mandar. A continuação dos acontecimentos fica para o próximo capítulo.

Gino saiu correndo. Parecia totalmente excitado com a situação, quase contente com o fato de coisas graves estarem acontecendo. Eu estava perdido, tinha dificuldade em entender. O assassinato do presidente... Lembrei que Papai tinha dito no dia da vitória de Ndadaye: “Mais cedo ou mais tarde, eles pagarão por essa afronta”.

Naquela noite, fomos dormir cedo. Papai fumava mais que de costume; também tinha levado seu colchão para o corredor e escutava o radinho acariciando os cabelos de Ana, que já dormia profundamente. Apenas uma vela nos iluminava, encobrindo os contornos do cômodo.

Por volta das nove da noite, a música clássica parou. Um apresentador tomou a palavra, em francês. Pigarreava entre cada frase, sua voz monótona contrastava com a gravidade da situação, parecia anunciar os resultados esportivos de uma competição local de vôlei: “O Conselho Nacional de Saúde Pública tomou as seguintes decisões: toque de recolher em toda a extensão do território das 18h às 6h; fechamento das fronteiras; a circulação de pessoas de uma municipalidade a outra fica proibida; o agrupamento de mais de três pessoas fica proibido; o Conselho pede à população que mantenha a calma...”. Eu peguei no sono antes do final da lista. Sonhei que dormia tranquilamente, suspenso numa nuvenzinha bem macia formada pelos vapores de enxofre de um vulcão em erupção.


Gaël Faye, nascido no Burundi e radicado na França, é escritor e rapper.

Tradução de Maria de Fátima Oliva do Coutto.

Ilustração de Rodrigo Visca, artista gráfico.

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