Atrás das câmeras, Lázaro Ramos dá início a mais uma de suas novas fases

Ator e escritor agora dirige seu primeiro longa de ficção, "Medida Provisória"

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[RESUMO] Ator, autor e apresentador, Lázaro Ramos se lança pela primeira vez na direção de um filme de ficção, ‘Medida Provisória’, sobre um governo que obriga negros a se mudarem para a África.

A certa altura de “Na Minha Pele”, livro em que desfia histórias de sua vida, Lázaro Ramos lembra uma de suas experiências formadoras como documentarista: entrevistar o ator e cineasta Zózimo Bulbul (1937-2013).

Um dos primeiros negros a conquistar papel de destaque em uma telenovela brasileira —“Vidas em Conflito” (1969), em que fazia par romântico com Leila Diniz, mas nunca aparecia em cena de beijo—, ele logo passou para trás das câmeras, com uma filmografia transgressora e admirada que, em janeiro, foi exibida no Festival de Roterdã.

Na conversa com Lázaro, Zózimo disse que a carreira de diretor ebuliu da sensação de não aguentar mais ter a própria história contada pelos outros. E, ao se despedir, pegou o entrevistador pelos ombros, apontou para a câmera no set e falou: “Aquilo é uma arma. Use-a”.

 
O conselho parece ter ressoado em Lázaro, que agora dirige um filme de ficção pela primeira vez —a distopia “Medida Provisória”.

Esse passo inaugura uma nova fase na carreira de um artista que já teve outras “novas fases”: seja por seus livros infantis, pela direção no teatro, pela biografia best-seller ou pelas incursões como apresentador, já há muito soa impreciso referir-se a Lázaro Ramos apenas como “ator”.

Ele rejeita, contudo, a ideia que promove revoluções periódicas na carreira. “São os assuntos que me conduzem. Quando comecei a empreender, passei a me ver sendo mais útil nos projetos em posições diferentes”, diz à Folha. “Ao saber das minhas falibilidades em alguns lugares, tento me encaixar em outros.”

A intenção de realizar “Medida Provisória” surgiu numa peça de teatro dirigida por Lázaro em 2011, escrita por Aldri Anunciação e originalmente intitulada “Namíbia, Não!”. 

Desde essa época, o artista vinha dando com a cara na porta ao tentar convencer amigos diretores a abraçar o que havia de cinematográfico na história —que acompanha os esforços de um casal para se reencontrar após o governo editar uma medida que obriga todos os negros do Brasil a se mudarem para a África.

 
Decidiu ele mesmo capitanear o  projeto, produzindo e dirigindo. “Foi um processo admitir meu lado diretor. Por muito tempo, eu já falava das coisas mais como diretor que como ator, mas morria de vergonha de alguém saber que eu queria dirigir.”

Lázaro parece percorrer um caminho de amadurecimento artístico nem sempre linear. Diante de frases ditas em entrevistas há poucos anos e com as quais não concorda mais, ele dá de ombros e admite ser “um homem em construção”.

“No meu início como ator, eu me esforçava para contar outros sentimentos fora daquele que estava na cena”, lembra —o hibridismo e o desconforto com gêneros encaixotados são frequentes em seu discurso.

“No Foguinho, anti-herói de ‘Cobras e Lagartos’ [novela de 2006], por exemplo: todas as cenas em que ele era um pouco vilão, eu fazia com olhar pedindo amor. Nas cenas em que ele era mais sofrido ou amoroso, eu fazia com duplo sentido.” 

“Não sei bem explicar o porquê disso. Tem uma confusão aí que hoje, na altura dos meus 40 anos” —diz em tom de galhofa— “consigo assumir. Antes eu ficava meio calado quando estava em uma roda em que se falava dos meus personagens.”

Personagens estes que escassearam conforme Lázaro passou a vestir o chapéu de outras atividades. Seus trabalhos como ator em cinema e TV de 2001 a 2010, excluindo participações curtas, passam de 20 créditos, enquanto nesta década ainda não chegaram a 15 —mesmo se contar “O Silêncio da Chuva”, filme inédito de Daniel Filho em que faz o detetive Espinosa, protagonista da obra  de Luiz Alfredo Garcia-Roza.

Ao ser perguntado sobre esse movimento, ele toma ares de indignação. Mão no queixo e olhar no horizonte, assume uma expressão de “não é possível” e prefere ressaltar a longevidade dos papéis que defendeu nos últimos anos: o personagem-título na série “Mister Brau” (2015-18) e a interpretação de Martin Luther King na peça “O Topo da Montanha”, dirigida por ele e que, desde 2015, continua fazendo temporadas.

Lázaro pondera que seu tempo tem sido tomado por programas da TV Globo nos quais atuou como apresentador. Como ninguém é Midas, tanto “Lazinho com Você” (2017), seu projeto mais pessoal, quanto o game show “Os Melhores Anos das Nossas Vidas” (2018) tiveram audiência decepcionante. Por outro lado, o programa de entrevistas “Espelho”, seu xodó, segue inabalável há 14 temporadas no Canal Brasil.

O que é comum a essas empreitadas de Lázaro é a vontade de se comunicar com público vasto. Ele lembra que seu livro “Na Minha Pele” (Objetiva), que hesita em se definir como autobiografia, era bem diferente nos rascunhos iniciais. 

“Se você ler a primeira versão, é um palavrório, é arrogante, é eu tentando dar uma de estatístico. Depois eu disse: mas estou escrevendo para quem?”. A versão que chegou às livrarias há dois anos praticamente pega o leitor pela mão, chamando-o de “companheiro de viagem”.

Na entrevista, Lázaro se mantém atento para não soar presunçoso —ao dizer, do longa que está rodando, que tenta “falar para mais do que um homem, quero falar para todos nós”, o diretor se interrompe e murmura: “É pretensão, puta que pariu”.

Permanece, porém, a intenção de falar a muita gente. Taís Araújo, protagonista do filme, que está com Lázaro há 14 anos e é uma das poucas constâncias na carreira versátil dele, sublinha a capacidade de comunicação do marido como uma de suas melhores características. “Ele consegue falar de assuntos espinhosos de maneira muito acolhedora, de forma que as pessoas se sintam parte da questão”, afirma a atriz.

“Às vezes parece que há apenas duas opções de filmes, o alternativo ou o comercial. Estou tentando ir pelo meio do caminho: ter uma grande comunicação com o público e um assunto relevante”, diz Lázaro, argumentando ser essa a razão pela qual procurou incorporar no roteiro traços de gêneros como a comédia e o thriller —assim como chamar estrelas para o elenco.

“Dona Diva!”, grita Lázaro, alongando o “i” e afinando a voz, enquanto desce a escadaria em frente a uma agência do Banco do Brasil que serviu de cenário para a filmagem de “Medida Provisória” que a Folha acompanhou, no Rio.

A cena registrada naquela manhã, sol a pino, era a primeira do roteiro. Uma senhora tenta retirar o dinheiro de uma indenização no banco. O saque, porém, é negado, diante de jornalistas que acompanham a cena. A dona do primeiro rosto que deve aparecer no filme é Diva Guimarães.

A professora aposentada de 79 anos se celebrizou na Flip, em 2017, ao pegar o microfone e fazer um relato dilacerante sobre sua experiência com o racismo —o que emocionou Lázaro, que estava no palco.
No set, agora, ela discute com o diretor as razões pelas quais seu papel não tem falas e expressa certo receio de, atriz de primeira hora, acabar arriscando umas palavras. Ele se diverte e a orienta a guardar o improviso para determinada altura, advertindo: “Só não vai falar palavrão”.

Já posicionada em cena, ela continua a ouvir os brados do diretor: “Assim mesmo, esse sorrisinho e essa cara linda que a senhora tem”; “Dona Diva, eu vou morder a senhora se continuar fazendo bem assim”; “Jorge, taca pau, velocidade e emoção”. Jorge é Seu Jorge —outro multiartista que também estrela neste ano “Abe”, de Fernando Grostein Andrade, e “Marighella”, de Wagner Moura. Em “Medida Provisória”, ele é um jornalista que grava entusiasmado a ação da personagem de Diva.

O elenco ainda traz Adriana Esteves, Renata Sorrah, Mariana Xavier, Flávio Bauraqui e outro estreante famoso, o cantor Emicida. O grupo é encabeçado por Taís e Alfred Enoch, da saga “Harry Potter” e do seriado “How to Get Away with Murder”.

É a primeira vez que Enoch atua em português, língua que domina: sua mãe, Etheline, é carioca e negra. Aos 30, ele se diz afortunado por estar num projeto que lhe permite retomar algo de sua identidade.

Filho do ator britânico William Russell, 94 e branco —que faz ponta no filme—, Enoch afirma que passou parte de sua vida  em ambiente protegido do racismo, enquanto sua mãe penou sob o preconceito ao se formar médica no Brasil da ditadura militar. “E esse filme fala sobre o que é pertencer a um lugar. Sobre quem tem o direito de dizer ‘esse país é meu’”, completa.

O filme comenta a experiência do negro no Brasil, tema sobre o qual Lázaro reflete não importa de qual ângulo do prisma profissional esteja olhando. Ele quer ressaltar agora “a diversidade dentro da negritude”. “Às vezes o termo ‘negro’ pode reduzir. Dentro do ser negro, há variação, e o filme tenta contribuir com isso”, afirma. “Se tem algo de político no filme, é esse discurso: a gente precisa resgatar a capacidade de compreender que nós não somos lados, temos direito à individualidade.”

Diretor que também estreou no cinema já depois de uma carreira bem consolidada na televisão, Jordan Peele causou alvoroço no mês passado, na divulgação de seu “Nós”, ao comentar: “Não me vejo colocando um cara branco como protagonista de um filme meu. Não que eu não goste de caras brancos, mas eu já vi esse filme.”

Lázaro não responde se concorda com o sentimento expresso por Peele. Alerta contra o perigo de frases reducionistas e limita-se a dizer que busca trazer outros elementos à discussão. “Cada artista tem um desejo, e Jordan tem o direito de ter o desejo que ele quiser. O bom não é isso?”.

Segundo o baiano, o que interessa a ele é multiplicar as vozes de artistas negros expressando seus desejos —e, se incentiva novos talentos, “não é por benesse”, diz, e sim por sua capacidade de provocar e trazer repertórios diferentes. Rejeita, porém, a ideia de ser um desbravador de caminhos. “Não gosto muito de ficar no lugar de ‘a referência’. A caminhada é lado a lado, e há vários formatos possíveis”, argumenta, antes de citar uma lista de cineastas negros que o impressionam. 

Vai de Jeferson De (“Tem três filmes para lançar!”) e Joel Zito Araújo (“Meu Amigo Fela’ é um negócio absurdo”) a artistas que despontam, como Viviane Ferreira, Juliana Vicente e “a turma de ‘Café com Canela’ e ‘Ilha’” —do Recôncavo Baiano, sob direção de Glenda Nicácio e Ary Rosa.

Se é improvável que “Medida Provisória” passe despercebido, não há motivo para não se atentar também a esses outros. E se Zózimo Bulbul é hoje pouco conhecido, muito por efeito do racismo na indústria cultural, nada impede o resgate do cinema que empunhava como arma. Para Lázaro, uma vez filmada, “a história fica perene”. “Sou fruto das obras artísticas que vi. Minha relação com o cinema é a da permanência”. 


Walter Porto é repórter da Ilustríssima e viajou a convite da produção de "Medida Provisória".

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