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Estudo controverso sobre Da Vinci fez Freud avançar psicanálise

Publicação foi duramente criticada por retratar gênio renascentista como homem comum erotizado

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João Frayze-Pereira

[RESUMO]Estudo controverso de Freud sobre a Leonardo da Vinci, duramente criticado por retratar o gênio renascentista como um homem comum erotizado, permitiu a elaboração de conceitos importantes da psicanálise.

“Leonardo da Vinci e uma Lembrança de Sua Infância” é um estudo controverso. Desde a sua publicação, em 1910, foi duramente criticado por historiadores da arte, filósofos e, também, psicanalistas. Apesar disso, Sigmund Freud confidenciou a um amigo: “foi a única coisa bela que escrevi”.

Freud podia estar ciente das qualidades de seu estudo sobre Da Vinci, mas não chegou a ver o reconhecimento desse trabalho, posteriormente integrado ao conjunto de obras clássicas da literatura alemã. Dada essa controvérsia, fica a pergunta: quais seriam os motivos dessa contundente recepção crítica?

Visitante diante do quadro “A Virgem e o Menino com Santa Ana”, de Leonardo da Vinci, exposto no Louvre  - Gao Jing/Xinhua

Em primeiro lugar, observa-se que a própria natureza do ensaio foi posta em questão. Entendido como um estudo de psicanálise aplicada à arte, ele foi criticado por revelar mais a teoria pressuposta pelo intérprete do que a singularidade do objeto analisado —operação considerada um mau uso da psicanálise.

Além disso, ousando tematizar explicitamente a psicossexualidade do artista, Freud perverte a sua imagem. No entanto, os comentários de que o texto seria mera aplicação da psicanálise à arte são eles mesmos controversos: como poderia ocorrer essa operação se, no momento da escrita, a teoria freudiana estava em processo de formação e, portanto, não passível de aplicação?

Tal impossibilidade, entretanto, não impediu que, durante a elaboração do texto, brotassem temas de estreita relação com a psicanálise: a teoria sexual das crianças, a dupla filiação (pai, mãe biológica e mãe adotiva), a homossexualidade do artista, o interesse no estudo do corpo humano, a paixão pelos pássaros, os paralelos mitológicos. 

Eles surgiram articulados a uma bibliografia razoável, desde o estudo clássico de Vasari e os vários escritos do próprio artista até os realizados por autores modernos, sobretudo a biografia de Da Vinci, inteiramente romanceada, escrita pelo russo Dmitri Merejkowski, pela qual Freud tinha particular apreço, deixando-se influenciar por ela. 

E, a partir da ideia de conversão da sexualidade em pulsão de saber, o conceito de sublimação é formulado por Freud. Quer dizer, o artista permite ao psicanalista elaborar teoricamente a transformação da pulsão sexual de que resulta a capacidade humana de fazer obras de arte e de experimentar certa satisfação. 

As realizações de Da Vinci, nessa medida, forneceram a Freud material para avançar em seu próprio campo, elaborando conceitualmente uma nova temática (sublimação) e introduzindo outra (narcisismo). Se, por um lado, esse movimento é criticado, por outro, constitui uma possibilidade admissível de relação entre arte e psicanálise: aquela é encontrada por esta como objeto evocativo, fonte de infinitas interpelações que fazem evoluir as teorias psicanalíticas.

Depois, é preciso notar que o criador da “Mona Lisa” é para Freud um personagem com o qual se identifica, dado um investimento excessivo comum a ambos: a ânsia por conhecimento. Da Vinci foi pintor, escultor, músico, engenheiro, cientista, arquiteto, inventor; resumindo, um contumaz observador da natureza. 

No livro “Arte e Conhecimento em Leonardo da Vinci”, lançado neste ano, Alfredo Bosi faz uma análise magistral desses dois aspectos na trajetória do artista. Mostra, por um lado, a singularidade de seu pensamento, para o qual “o conhecimento principia com o desejo de conhecer”, e, por outro, o seu profundo interesse pela instabilidade do ser que o leva a buscar “uma nova relação entre experiência, imaginação e fazer, segundo a qual conhecer a natureza é também (desejar) recriá-la, no pensamento e na obra”, como destaca Lorenzo Mammì na contracapa do livro.

Nesse sentido, a pintura de Da Vinci —“filha da natureza e, mediante esse parentesco, quase neta de Deus”, segundo ele mesmo— está autorizada a inventar um novo modo de contornar as figuras, diferente da forma consagrada no primeiro Renascimento, privilegiando a transição gradual “entre atmosfera e corpos”, uma implicação daquela concepção.

O sfumato, por exemplo, técnica artística desenvolvida por Da Vinci que permite gerar suaves gradientes entre as tonalidades, é uma decorrência plástica dessa transformação, assim como o notável inacabamento das pinturas. 

Ora, Freud é também autor de uma obra cuja elaboração é interminável. Nota-se, também, que o respeito à mãe-natureza está presente em ambos. Mais ainda, o próprio estudo sobre o pintor, segundo as belas palavras de Marthe Robert, pode ser visto como “um ato de piedade e de amor para com a mãe que, como a natureza, a quem Freud presta homenagem em sua obra, ao mesmo tempo pode salvar e perder os filhos queridos”.

Cabe, então, perguntar —como Freud percebe Da Vinci, quem é esse outro que faz o psicanalista pensar? Em poucas palavras, não é um personagem do Renascimento, mas um artista oitocentista. 

E como o crítico de arte Leon Kossovitch argumentou, num encontro que tivemos no Masp, em 2000, foram os próprios historiadores da arte que auxiliaram Freud a tomar o caminho que seguiu. 

Quer dizer, Freud está comprometido com a historiografia do século 19 e com a nascente história da arte, no tocante à sua articulação estilística e psicológica.

A questão se verifica tanto nos equívocos de tradução, apontados pelos críticos, quanto no desconhecimento de noções básicas do modo de pensar normativo, vigente na época, regulador das ciências e das artes, que vinculava, sobretudo a partir dos estudos da perspectiva no século 14, investigação matemático-física e estudos retórico-poéticos, aos quais Da Vinci não era alheio.

Assim é que, orientado por autores do século 19 que ignoravam a história como gênero discursivo, Freud procura traço psicológico num escrito preceptivo, no qual se faz o elogio da arte, quando busca caracterizar a personalidade do artista ao reter de seu texto a comparação da pintura e da escultura, atribuindo à primeira uma plenitude que falta à outra. 

No entanto, esse elogio da pintura, por ser de ordem retórica, mostra uma virtude e não uma personalidade, pois não é possível encontrar traço psíquico onde não há psicologia. Daí a dificuldade para se definir o estatuto da memória infantil: lembrança, fantasia, sonho? 

Em suma, pode-se dizer que, se há equívoco no ensaio de Freud, não é o de ter confundido “abutre” com “milhafre”, ave de rapina que figura na lembrança infantil do artista (uma confusão apontada por Shapiro), mas sim o Da Vinci que viveu no Quattrocento com o artista do Ottocento, concebido nos termos de uma psicologia expressiva que sequer existia nos tempos do pintor. 

O erro histórico e epistemológico que resulta da ilusão retrospectiva está presente no ensaio, porém baseado em historiadores da arte que positivaram e idealizaram os séculos do Renascimento.

Posto isso, fica mais uma pergunta: teria sido possível ocorrer de outro modo, em se tratando de Freud? Mais ainda: seria possível fazermos uma leitura crítica do Da Vinci de Freud sem o suporte da filosofia contemporânea e das ciências humanas que inventaram as noções de estrutura e genealogia, legitimando a aproximação a certos fenômenos históricos de longa duração, como as mentalidades, que expressam as maneiras de ser criadas por certa formação histórica? 

Freud não leu Erwin Panofsky, mas Jacob Burckhardt, e isso só faz diferença para nós: em que medida uma leitura da arte do Renascimento, que supõe estudos de iconologia, não é tão contemporânea de nós quanto o foi a interpretação de Freud dos seus?

Que a psicanálise se apresenta como uma teoria sobre o psiquismo individual, ao mesmo tempo que uma teoria sobre as maneiras pelas quais tal psiquismo é aculturado, se coloca desde Freud, um pensador da cultura. Portanto, a possibilidade de uma psicanálise dos objetos de arte para além da diferença histórica não poderia se justificar.

O que torna suspeito o estudo de Da Vinci feito por Freud é que ele parece ir muito além das analogias estruturais que apenas uma análise da composição autorizaria, chegando a destacar a temática pulsional a que a obra recobre. 

Não diz Freud, em resumo, que a lembrança da primeira mãe e de seu carinho excessivo é transferida para a fantasia da cauda do pássaro na boca da criança, à tendência homossexual do artista e ao sorriso da “Mona Lisa”? Mais do que isso, o que Freud chega a mostrar é que “o pincel de Da Vinci não recria a lembrança da mãe, ele a cria como obra de arte”, observa Ricoeur. 

E é nesse sentido que Freud pode afirmar: “Da Vinci negou e transcendeu, pela arte, a infelicidade de sua vida erótica nas figuras que ele criou”. Ou seja, a “lembrança da infância Da Vinci” é justamente aquilo a que remete o sorriso da Gioconda. 

Ao descrever esse sorriso em termos de uma psicologia expressiva, Freud deixa de lado o enigma colocado pelos “sorrisos leonardescos” para se interessar pelo sorriso vivo da modelo que o teria fascinado. E supõe que esse sorriso teria despertado no pintor alguma coisa adormecida há muito tempo em seu íntimo.

Esse “algo” seria aquilo a que o sorriso remete, mas que só existiria como ausência simbolizável, situada no rosto da “Mona Lisa”. Nessa medida, não é algo “conhecido não pensado” (Bollas) pelo artista que explicaria o enigma dessa obra, mas uma ausência visada que, longe de dissipá-lo, reforça o mistério inicial. 

Quanto a isso, a análise não conduz o leitor do menos ao mais conhecido no campo artístico. Pouco importa, contudo. Afinal, o propósito desse estudo de Freud não é interrogar uma obra de arte (o que acontece em um ensaio posterior, publicado em 1914).

Embora certa estética da criação esteja pressuposta, com efeito, o pintor não é tratado como “divino”, como era designado no Renascimento, mas como “homem comum”, conforme Freud esclarece no último capítulo do ensaio, dizendo que, “como qualquer ser humano, ele corresponde a uma dessas inúmeras tentativas por meio das quais as ragioni da Natureza são compelidas à experiência”. 

Ou seja, não é a arte a temática interrogada por Freud, mas a problemática da vida, apontando para a troca contínua entre passado e futuro, mostrando que cada vida sonha enigmas cujo sentido final não se encontra fixado em parte alguma e que, então, exige liberdade para ser elaborado como “retomada criativa de si mesmo” (Merleau-Ponty). 

Assim é que, podemos concluir, a arte sobre a qual Freud reflete com Da Vinci é a da vida cuja dinâmica, marcada por dores e alegrias, ilusões e desilusões, às vezes é conhecida, mas nem sempre é pensada. É, portanto, um equívoco considerar esse trabalho freudiano como um modelo para o estudo psicanalítico das artes plásticas.

Ele é, mais precisamente, um ensaio sobre a vida como arte, contestando o falado conservadorismo de Freud que não nega a genialidade do artista, mas percebe-a enraizada em sua vida. Ao tratar um gênio clássico (divino) como um homem comum (erotizado), o psicanalista afirma a vocação da psicanálise para a subversão do instituído. 

E, talvez, esteja nessa tendência do ensaio o principal motivo da sua rejeição. Nesse sentido, é o modo negativo da recepção que se mostra conservador, pois aderido ao discurso consagrado sobre a arte dos gênios renascentistas. E a psicanálise, em contrapartida, desde Freud, se apresenta como uma perspectiva criativa-crítica sobre a cultura.

Afinal, afirmando-se como um modo de trabalhar que busca transcender a banalidade dos discursos com interpretações, ela problematiza as formas instituídas da sensibilidade e do pensamento, abrindo-as à liberdade criativa exigida pelos objetos culturais para que deles possamos ter experiência. 


João Frayze-Pereira é psicanalista, membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e professor do Instituto de Psicologia e da pós-graduação interunidades em estética e história da arte da USP.

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