Quem é o tradutor que transpôs Freud e Nietzsche para um português melodioso

Prestes a concluir o projeto de traduzir obras completas dos dois pensadores, Paulo César de Souza erigiu um marco que impactou os estudos de filosofia e psicanálise

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Rio de Janeiro

A janela do quarto do tradutor enquadra a baía de Todos os Santos e o forte São Marcelo, edificação do século 17 sobressaída no mar pontilhado de barcos. No bairro Dois de Julho, centro de Salvador, cercado de cenas tropicais e feiras populares, Paulo César de Souza, 64, debruçou-se sobre as traduções de Sigmund Freud e Friedrich Nietzsche, editadas pela Companhia das Letras. 

O mergulho nos textos de dois grandes estilistas da língua alemã virou um marco da vida editorial brasileira e impactou os estudos de filosofia, psicanálise e literatura no país. 

A edição das obras completas de Freud foi a primeira, em língua portuguesa, a ser traduzida do original alemão. “Vivi em São Paulo entre 1987 e 1994 e lá era mais dispersivo para mim, com muitas solicitações, convites para lançamentos, exposições, eventos, pois lá muita gente produz coisas, já que é a cidade mais rica. Quando voltei para Salvador é que pude me concentrar nas traduções de Nietzsche e Freud”, conta Souza. 

Os dois projetos portentosos estão perto do fim. Desde junho nas livrarias, “A Interpretação dos Sonhos” é o 16º dos 19 volumes da coleção Freud. Em breve sairão os tomos 1, 3 e 5; o 20 trará apenas os índices e as bibliografias (a publicação não segue a ordem numérica). 

Em outra frente, Souza concluiu neste ano a tradução de “O Nascimento da Tragédia”, de Nietzsche, que será lançado em 2020. Só falta “Considerações Extemporâneas” para fechar a obra completa. “A coleção Nietzsche terá todos os livros que ele escreveu, não as anotações que deixou, os chamados ‘fragmentos póstumos’.”

Em jornadas de quatro horas, ele traduz uma página por dia, deixando-a quase na forma final, à espera da última revisão. “Minha rotina de tradutor continua a mesma. Sou um trabalhador lento”, confessa.

Na biografia “Freud – Uma Vida para o Nosso Tempo”, Peter Gay detalha a obsessão estilística do criador da psicanálise para atingir uma “expressão simples e elegante” no livro que retiraria a exclusividade de poetas e profetas sobre o mundo dos sonhos.

O tradutor perseguiu uma prosa em português de sabor equivalente: “Traduzi Freud como o grande ensaísta que ele foi”. “A Interpretação dos Sonhos”, datado de 1900 e influente ao longo do século 20, é aberto na edição brasileira pela imagem de uma escultura do Bali, da coleção pessoal do austríaco, “Mulher Assombrada por Espíritos Ruins e Animais Venenosos”.

O próprio tradutor absorve o primado da clareza em suas três coletâneas de ensaios, artigos e entrevistas: “Sigmund Freud & O Gabinete do dr. Lacan” (co-autor), de 1989; “Freud, Nietzsche e Outros Alemães”, de 1995; e “Sem Cerimônia”, de 1999. 

Sua dissertação de mestrado na UFBA, “A Sabinada – A Revolta Separatista da Bahia”, e sua tese de doutorado na USP, “As Palavras de Freud”, no catálogo da Companhia das Letras, têm a mesma ausência de barroquismo.

A juventude de Souza se repartiu entre quatro capitais. Em 1955, semanas após seu nascimento, sua família deixou o bairro da Liberdade, em Salvador, e foi morar por quatro anos em Aracaju (SE). As trocas de emprego do pai orientaram as futuras mudanças para São Paulo, onde o garoto se alfabetizou e residiu por outros quatro anos, e para o Rio de Janeiro. 

“Meus pais só tiveram o curso primário, mas se esforçaram em nos dar bons colégios, a mim e a minha irmã, e me presenteavam livros na infância”, lembra Souza, casado desde 2016 com a artista plástica Lara Viana.

No Rio, ele estudou no colégio Marista e atravessou um fervor católico entre os 14 e 15 anos, logo abandonado ao frequentar teatros e cinemas. Sua fé desmoronou aos 16 anos. De volta a Salvador, matriculou-se no colégio Dois de Julho, fundado por missionários presbiterianos, e aproximou-se de amigos como o antropólogo Antonio Risério e a jornalista Mônica Rodrigues da Costa. Mais adiante, 
licenciou-se em história na UFBA.

Em 1972, no regresso do exílio londrino, o compositor Caetano Veloso seria apresentado a esse grupo de jovens intelectuais pelo sociólogo Fernando Barros. O tradutor se tornaria um dos maiores amigos do artista. 

Ao filmar seu único longa, “O Cinema Falado” (1986), Caetano o chamou ao Rio e pediu que decorasse um trecho do ensaio “O Casamento em Transição”, de Thomas Mann. Horas depois, numa praia, Souza disse o texto na língua original, pescando os inícios de parágrafos numa cola erguida em sua frente. No filme, essa sequência em bom alemão dura sete minutos e 35 segundos.

O fascínio por autores alemães levara-o a estudar no Instituto Goethe de Salvador, aprendizado enriquecido em dez viagens à Alemanha, somando ao todo nove meses. “Minha mais longa permanência foi a primeira, cinco meses em 1977. Embora fale com certa fluência, meu conhecimento é sobretudo passivo, de leituras. As quatro competências —ouvir, falar, ler e escrever— são distintas, não se desenvolvem igualmente. Graciliano Ramos, por exemplo, traduziu Camus e não falava francês.” 

Houve um embalo vivencial. Em 1986, visitou a casa de Freud, em Viena, e em junho de 2000 percorreu os lugares de Nietzsche na Alemanha e na Itália, num périplo que o levou ao túmulo do filósofo em Röcken. Era o dia mais quente da aldeia desde 1876 e o sol banhava uma parte da sepultura, vindo à sua memória um provérbio germânico: “Onde a luz bate mais forte, a sombra é mais escura”. 

Em “Além do Bem e do Mal”, de 1886, Nietzsche fez o célebre comentário sobre a musicalidade das palavras: “Que tortura são os livros escritos em alemão para aquele que possui o terceiro ouvido!”. O tradutor entendeu com o livro “Ecce Homo” (1888) a essência desse desafio. 

“Nos anos 1970 eu não atentava para as traduções, pois ainda vivia em estado de ‘inocência estilística’, na expressão de Nietzsche. Minha primeira tradução fiz aos 20 anos, sem pensar em publicar —isso não estava em meu horizonte—, apenas para que a namorada e os amigos lessem. Foi o romance ‘O Diabo no Corpo’, de Raymond Radiguet. Dez anos depois é que a enviei para a Brasiliense e foi publicada. Mas só vim a ter consciência da musicalidade das palavras ao traduzir ‘Ecce Homo’ em 1985. Aí eu entendi melhor porque as traduções dos irmãos Campos e de Manuel Bandeira, por exemplo, haviam me impressionado”, relembra.

Ele distingue a beleza de línguas latinas como o português, o italiano e o francês. “Claro que a sonoridade da língua materna, que já ouvimos na barriga da mãe, sempre nos será mais familiar que a das outras. Mas parece que algumas são realmente mais sonoras do que outras. Nisso as línguas latinas parecem ter vantagem, pois as consoantes são geralmente acompanhadas de vogais. Por isso Fernando Pessoa se referiu, talvez com pena, aos ‘europeus sem vogais’, isto é, os germânicos e eslavos.”


As reflexões críticas dos concretistas tiveram relevância em sua trajetória. “Conheci o Paulo César nos anos 1970 e acompanho o seu valoroso trabalho de tradução”, diz o poeta Augusto de Campos, que esteve em Salvador em 1973. À época, o estudante de língua alemã era leitor cuidadoso do semanário Pasquim.

“Minha aproximação a Freud se deu inicialmente pelas indicações de Paulo Francis, que foi a maior influência intelectual de minha adolescência. A maior influência estética e existencial foi 
Caetano, sem dúvida”, afirma Souza. 

O encargo de dirigir as coleções de Freud e Nietzsche confere ao baiano uma honrosa semelhança com a missão cultural do húngaro naturalizado brasileiro Paulo Ronái (1907-1992), coordenador da equipe de tradutores da “Comédia Humana” de Balzac para a editora Globo. Além de traduzir, Souza escreveu notas e posfácios.  

“Ao longo dos anos, escutei várias solicitações para que traduzisse ‘O Nascimento da Tragédia’, talvez por ser o único da coleção que não havia traduzido [Jacó Guinsburg assina a edição anterior]. Terminou sendo a tradução mais difícil, por ter sido o primeiro livro de Nietzsche, em que ele usa conceitos de Schopenhauer e escreve uma prosa mais rebuscada, talvez para impressionar seu mentor Richard Wagner.”

A dificuldade de financiar projetos longos de traduções, frequente entre tantos profissionais, ganha nuances em seu itinerário. “Meu caso é diferente, pois recebo percentagens sobre as vendas dos autores que traduzo. No caso de Nietzsche e Freud, como são de domínio público, tenho os direitos autorais das traduções. Por isso esperei até 2010 para começar a publicar as de Freud, embora tenha começado a fazê-las em 1992.”

Nas últimas duas décadas, ele se acostumou a ouvir questionamentos de psicanalistas sobre as traduções de termos técnicos de Freud, embora insista nas notas introdutórias que suas escolhas não são impositivas: “Ao ler essas traduções, apenas precisarão fazer o pequeno esforço de substituir mentalmente ‘instinto’ por ‘pulsão’, ‘instintual’ por ‘pulsional’, ‘repressão’ por ‘recalque’, ou ‘Eu’ por ‘Ego’, exemplificando”.

“Escrevi um livro [‘As Palavras de Freud’] sobre as questões que envolvem esses e outros termos, mas sempre haverá essa disputa, pois assim os grupos divergentes mantêm a própria identidade. Quanto a ‘trieb’, há séculos é traduzido por ‘instinto’ ou ‘impulso’, mas há algumas décadas os psicanalistas franceses (nem todos, porém) adotaram ‘pulsão’. Acontece que não se pode distinguir entre ‘pulsão’ humana e ‘instinto’ animal em Freud, pois já na primeira frase dos ‘Três Ensaios sobre a Sexualidade’ ele usa o termo ‘trieb’ para seres humanos e animais. Ele acompanhou as traduções de suas obras para outras línguas europeias enquanto viveu e nunca recusou ‘instinto’, embora reconhecendo a insuficiência do termo. Quanto a ‘repressão’, foi ele próprio que sugeriu”, explica.

Os diálogos com psicanalistas não se resumem a esses debates. O tradutor passou pelo divã. “Fiz psicanálise nos anos 1980 e 1990, com dois analistas, três vezes por semana, num total de sete anos. Acho que me ajudou como qualquer psicoterapia pode ajudar ou não. Minha impressão é a de que, no fundo, ninguém sabe realmente como funciona —quando funciona. Não acredito na pretensão de que a psicanálise seja terapeuticamente mais profunda e intelectualmente mais elevada do que outras psicoterapias, embora tenha sido a primeira.”

Apresentado a Souza nos anos 1980, por obra de Caetano, o poeta Antonio Cicero é um admirador do trabalho do tradutor. “Como leio em alemão, reconheci logo a excelência dessas traduções, tanto que, normalmente, eu as uso quando tenho que citar Nietzsche em português, como, por exemplo, no meu livro ‘O Mundo desde o Fim’ e em meu ensaio ‘A Poesia e a Crítica’”, diz. “Penso que as primorosas traduções de Paulo César de Souza —tanto da obra de Freud quanto da de Nietzsche— são valiosas contribuições para os estudos desses autores não apenas no Brasil, mas em todos os países lusófonos.”

Mais conhecido por traduzir prosadores, Souza já encarou também 270 poemas de Bertolt Brecht e outros esparsos de poetas como Giacomo Leopardi, W.B. Yeats, W.H. Auden, T.S. Eliot e Giuseppe Ungaretti.

Em 1991, dividiu com Risério a tarefa de traduzir a antologia “Altazor e Outros Poemas” (Art Editora), 
do chileno Vicente Huidobro. “A tradução de poesia é tida como mais difícil por causa do uso ostensivo de métrica e rima, das várias possibilidades delas, da disposição na página etc. Mas existe prosa de complexidade equivalente. Devo ter traduzido uns 300 poemas, mas a imensa maioria foi de Brecht. Nota-se que mesmo neles minha tendência é ‘prosaica’. Sou mais da prosa que da poesia”, reconhece. 

A escrita limpa de Souza corresponde à personalidade de homem sem firulas nas conversas e avesso a elogios vagos ou fáceis. Um incidente revela tanto o seu humor como o seu rigor. A coletânea “Sem Cerimônia” inclui uma carta sua de 1985 ao editor Moisés Limonad, em que contestou as mudanças sugeridas pelo revisor de “Ecce Homo”. 

Na autodefesa, Souza pinçou o trecho de uma carta de Nietzsche ao escritor August Strindberg, “pois, cá entre nós, a tradução do meu ‘Ecce Homo’ requer um escritor de primeira ordem”. E concluiu: “Sei como é imodesto citar essas afirmações. Mas a modéstia é uma doença de que já não sofro; do contrário, não teria traduzido Nietzsche”. O editor deu-lhe razão.

“Ainda não sei o que farei depois de Freud e Nietzsche. Penso em retomar o estudo do latim, para talvez traduzir alguns autores romanos”, diz. “Nada disso tem importância diante da catástrofe ambiental que já começou no mundo. Em vez de Nietzsche e Freud, é preciso ler David Wallace-Wells.” 

Antes desse grande crepúsculo, ele continuará a nadar na enseada do Porto da Barra.


Claudio Leal, mestre em teoria e história do cinema pela USP, é jornalista. 

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