Siga a folha

Descrição de chapéu
Rosane Borges

Roda Viva reduz obra de Chimamanda Adichie a feminismo

Sem especialistas na bancada, programa reforçou que escritoras negras só podem falar de um lugar

Assinantes podem enviar 7 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Rosane Borges

Jornalista e pesquisadora da ECA-USP

[RESUMO] A escritora nigeriana Chimamanda Adichie abre muitas janelas para compreender o mundo, mas sua entrevista no Roda Viva na última segunda-feira (14) não foi capaz de percorrer as várias camadas de sua obra devido à escolha de um viés para o programa, mais preocupado com hashtags em redes sociais que com a pluralidade de prismas analíticos.

A notícia de que Chimamanda Adichie seria a próxima entrevistada no programa Roda Viva, na última segunda-feira (14), teve repercussão sísmica entre nós. Fomos imantados pela possibilidade de ouvir a escritora nigeriana de forma amplificada, uma vez que as raras entrevistas em português com Adichie não alcançaram audiência numerosa por serem transmitidas, fundamentalmente, em canais por assinatura.

Abria-se, assim, a oportunidade de um diálogo multifacetado com um dos nomes mais importantes da literatura mundial, gestado no espaço da telerrealidade brasileira.

Para afastar vozes que tendem a engrossar o coro dos ataques pessoais, sancionadas pelo espraiamento da destituição e do cancelamento, devo dizer que a minha crítica aqui aponta para a crise de um modelo de jornalismo que, ao buscar sobrevida na lógica do capitalismo algorítmico, agoniza ainda mais.

A escritora nigeriana Chimamanda Adichie em entrevista ao Roda Viva - Reprodução

Não são, portanto, às entrevistadoras convidadas (conheço e admiro algumas delas) e à entrevistada que direciono as observações deste artigo, ainda que ricocheteiem na apresentadora e na produção do programa.

Em condições normais de temperatura e pressão, teríamos um programa encorpado por perspectivas oriundas de vários assentos capazes de percorrer as camadas de Chimamanda. Afinal, trata-se de uma escritora que abordou, em sua jornada literária, temas relativos à imigração, a golpes militares, ao horror da guerra, a aculturação, ao feminismo —assuntos que captam o espírito do nosso tempo e que poderiam incensar o debate sobre as experiências contemporâneas no Brasil, na Nigéria e nos Estados Unidos.

A literatura enquanto forma de expressão presta-se ao papel de oferecer janelas para observar a paisagem a ser olhada, da qual somos parte integrante. Vamos combinar: Chimamanda nos abre múltiplas janelas, e, com a entrevista da escritora, integrante de uma família ibo, poderíamos ficar “à altura do nosso cotidiano”.

O que se viu, no entanto, foi um programa quase monotemático que, em grande medida, atravessou a obra de Chimamanda como cortina de fumaça. Insisto: se a entrevista privilegiou um assunto, essa deficiência não pode ser atribuída às vozes que modularam suas perguntas em um mesmo diapasão, com variações aqui e ali, mas à escolha calculada do programa em prismar sua roda de conversa sob um viés, ensombrecendo as outras janelas.

A abertura dessas outras janelas supõe e reivindica a escuta de outras provocações, advindas de outros territórios. A reação do público durante e depois da exibição do programa não mirou as presenças, mas as ausências, particularmente das vozes de especialistas.

(Que fique claro: não significa que as entrevistadas não sejam especialistas em vários assuntos, algumas são reconhecidamente intelectuais, mas reivindicou-se o discurso competente da crítica literária).

Sopesando as críticas em torno das ausências de especialistas da área, a escritora Cidinha da Silva comentou em seu perfil no Facebook:

“Nas redes sociais comenta-se sobre o perfil das entrevistadoras e as ausências literárias; o quanto não se falou sobre literatura com uma escritora e nem sobre sua particular criação artística. [...] Abordar sua produção literária, mesmo consagrada e premiada, é irrelevante para impulsionar a venda de seus livros (inclusive os de literatura), para a geração de audiência, para a geração de mídia espontânea, para ela, para a TV, para a banca de entrevistadoras e para a empresa editorial que publica seus livros no Brasil. Por óbvio, isso não diminui as partes envolvidas na cena sob qualquer ângulo de leitura, apenas recoloca os parafusos na engrenagem da indústria cultural.”

Embora concorde em linhas gerais com a observação de Cidinha da Silva, é preciso que se diga que prescindir de especialistas no mundo literário ou em qualquer outra área não é predicado inerente à indústria cultural.

Ao longo do século 20, época do triunfo do capitalismo produtivo (pelo menos até a década de 1970), do paradigma da radiodifusão e da distribuição de informações, a indústria cultural consagrou os experts na validação dos bens simbólicos e materiais. Eles serviram de mediadores essenciais entre as instâncias de produção e as de recepção/consumo.

Desconsiderar especialistas é fenômeno mais recente, é obra da astúcia do neoliberalismo, das infovias do capitalismo algorítmico, por onde a indústria cultural se renova em tempos do império do eu. Os “meninos” do Vale do Silício devem rir desbragadamente, tal como os memes de deboche, quando reivindicamos a presença de especialistas para qualquer coisa que seja, já que o que mobiliza a esfera pública interconectada não é mais a força do argumento abalizado.

No livro “The Crisis of Expertise”, o sociólogo norte-americano Gil Eyal afirma que testemunhamos a “morte da perícia”: nos debates políticos recentes, houve uma mudança significativa na valência da palavra especialistas, de superlativo para quase pejorativo, normalmente acompanhada por uma recitação das muitas falhas e erros cometidos por especialistas.

Na passagem da era industrial para a digital, em que triunfa o capitalismo financeirizado, o paradigma da conexão e da circulação (e não mais da radiodifusão), a vida humana, anexada ao capital, demanda a reconfiguração de suas formas, como nos lembra o pensador Muniz Sodré em seu mais recente livro, “A Sociedade Incivil”.

O Roda Viva, um dos mais tradicionais programas de entrevista da TV brasileira, no ar há mais de 30 anos, vem cumprindo essa tarefa: tornou mais diverso o ecossistema de pautas e aumentou o escopo dos entrevistados e entrevistadores, ressoando a voz de pessoas e grupos historicamente discriminados.

Ao mesmo tempo, visando o lugar dos "trending topics", flexibilizou um princípio descrito na súmula descritiva do programa: “Espaço plural para a apresentação de ideias, conceitos e análises sobre temas de interesse da população, sob o ponto de vista de personalidades notórias”.

Mesmo tendo ciência que a reconfiguração da forma passa pela renovação das estratégias de captura de audiência, a entrevista de Chimamanda Adichie reabre uma questão suplementar, mas não menos importante: ao não compor uma bancada plural (em termos de prismas analíticos), o Roda Viva endossou a lógica de que escritoras negras só podem falar de um lugar, ainda que esse lugar fale sobre a totalidade do mundo, como é o caso do feminismo.

O habitat geográfico e literario de Chimamanda é múltiplo. Sinalizar para ele, de forma equidistante, seria cumprir com os objetivos do programa em tempos de miséria do jornalismo. Mesmo sob a pressão das hashtags, mesmo dando de ombros para os especialistas, uma conversa com menu variado seria possível. Entrevistas recentes do programa com personalidades brancas provaram que é.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas