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Donny Correia

Criada há 80 anos, Atlântida fez das chanchadas um retrato do Brasil

Adoradas pelo público e detestadas pela críticas, comédias musicais ainda hoje ecoam em nosso cinema

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Donny Correia

Doutor em estética e história da arte e membro da ABCA e da Abraccine. É autor de seis livros e prepara uma revisão da obra completa de Walter Hugo Khouri

[resumo] Há 80 anos era criado o estúdio Atlântida, que com suas chanchadas —as comédias musicais adoradas pelo público, mas detestadas pela crítica— tornou-se o primeiro caso de produção industrial de massa no cinema brasileiro, cujo legado ainda reverbera nos filmes mais comerciais contemporâneos, embora hoje esteja ameaçado pela crise na Cinemateca.

Há 80 anos, o cruzamento de espetáculos dos teatros de revista e as vozes marcantes do rádio, somados à vontade de fazer cinema numa terra já dominada pelos filmes estrangeiros, gerou uma reação química potente e marcou o primeiro momento em que a indústria cinematográfica brasileira estabeleceu um diálogo alegre, vibrante e sólido com seu público. Era o período das chanchadas carnavalescas.

O carnaval carioca, símbolo da alegria encubada à espera da catarse contra as mazelas de um povo, encontrava nos bailes e nos programas de rádio a munição para embalar a folia.

Artistas da Rádio Nacional lançavam marchinhas que explodiam nos salões, enquanto as vedetes, em seus maiôs de lantejoulas, abrilhantavam o coro dos espetáculos musicais nas boates e nos cassinos.

Por que não juntar tudo isso e levar para as salas de cinema o que havia de mais genuíno em nossa cultura, ao invés de reverenciarmos o produto importado que vinha da MGM, Warner e outros estúdios de Hollywood?

Foi esta reflexão que levou o mineiro Moacyr Fenelon e o pernambucano José Carlos Burle, pioneiros do cinema brasileiro, a se aventurarem, em 1941, na criação daquele que se tornaria o mais importante estúdio brasileiro pelos quase 20 anos seguintes, a Atlântida Cinematográfica.

Para além do produto feito às pressas e sob medida a um povo pouco instruído e carente de espetáculos nacionais, a Atlântida, hoje, pode ser considerada o seio de uma antropofagia oswaldiana, que poucos estudiosos do assunto se deram ao trabalho de pensar a respeito.

No início dos anos 1940, o Brasil vivia um momento ambíguo. Getúlio Vargas tinha uma explícita admiração por Adolf Hitler e seu modo de conduzir a nação alemã. Seus conselheiros, no entanto, acreditavam que seria mais prudente alinhar o Brasil à cultura estadunidense, mais solar, democrática e musical. Foi o momento em que Carmen Miranda se tornou embaixadora do Brasil na terra do sonho hollywoodiano e também em que Walt Disney veio ao país trazer seu Zé Carioca.

A Alemanha era longe e sisuda demais para os brasileiros. O sol da Califórnia brilhava mais forte nos cinemas, e os grandes musicais com Fred Astaire e Ginger Rogers eram mais belos e alegres que os documentários ufanistas de Leni Riefenstahl. Para o brasileiro médio, era melhor sonhar a encarar um mundo que desabava do outro lado do oceano.

A Atlântida tinha, para além da intenção de consolidar um produto nacional, o desejo de sedimentar um circuito forte de distribuição e exibição. Burle e Fenelon queriam que o filme brasileiro fosse exibido no mesmo número de salas que os produtos importados.

Contrataram para seu elenco o que havia de melhor no mercado. Do rádio, os fenômenos como Emilinha Borba, Ivon Curi, Francisco Carlos, Adelaide Chiozzo etc. Para o time de estrelas, Renata Fronzi, Eliana Macedo, José Lewgoy, Jorge Doria, só para citar alguns.

No começo, a Atlântida se preocupou com tentativas de um diálogo direto com os problemas sociais do povo. Sua primeira ficção, “Moleque Tião” (1943), contava a história de um garoto negro que vivia entre a miséria do morro e a polifonia do asfalto. Era quase uma biografia de seu protagonista, Grande Otelo.

Logo, com a chegada do diretor Watson Macedo ao time, os filmes passariam a sintetizar os espetáculos populares e a transformá-los em comédias musicais. Dessa fase inicial, destacam-se “Não Adianta Chorar” (1945) e “Segura essa Mulher” (1946).

Reciclagem do modelo da Cinédia, a fórmula provou-se simples e certeira. Uma história cotidiana com algumas piadas de costumes, muitas marchinhas de salão, bolas coloridas e fumaça de gelo seco —eis as marcas inconfundíveis da Atlântida.

Os críticos em geral recebiam os filmes musicais carnavalescos com hostilidade. Referiam-se a eles como chanchadas, um termo depreciativo que aludia a produções de baixo orçamento e nenhuma qualidade técnica, estética ou narrativa. O termo era uma corruptela de “cianciatta”, do italiano, e significava categoricamente “porcaria”.

O público, todavia, não se interessava pelas opiniões da crítica e prestigiava com fervor seus ídolos a cada novo lançamento, completando a cadeia produtiva que foi se tornando cada vez mais frenética, na medida em que os executivos precisavam avaliar cuidadosamente quais seriam os hits do Carnaval seguinte para desenvolver as histórias, escalar os elencos de músicos e atores e aprontar tudo para que o filme estreasse a tempo de lançar as tendências da temporada.

Como anota Sérgio Augusto em seu já clássico livro “Esse Mundo É um Pandeiro: A Chanchada de Getúlio a JK” (1988), se o Carnaval caísse no final de fevereiro, em novembro do ano anterior tudo já devia estar devidamente encaminhado.

Assim, contando com equipes pequenas e pouco dinheiro, os filmes quase sempre abriam mão de maiores complexidades e se conformavam com o trivial. Música, mais música, piadas, um pouco mais de música, romances adocicados, um grande número final e pronto.

Nem só das fórmulas fixas, porém, vivam as chanchadas da Atlântida. Em 1948, após uma passagem do diretor italiano Riccardo Freda pelo Rio, quando dirigiu “Caçula do Barulho”, os produtores do estúdio descobriram um novo elemento que faria grande diferença, a pancadaria.

Este fermento deu luz a “Carnaval no Fogo” (1949), escrito em parte por Anselmo Duarte e dirigido por Watson Macedo. O filme revolucionou o gênero, trazendo intrigas como troca de identidade, perseguições, quebra-quebra e, claro, muitas músicas e gargalhadas. “Carnaval no Fogo” consolidou um padrão de casal-modelo (Anselmo Duarte e Eliana Macedo), de vilão psicótico (José Lewgoy) e do alívio cômico (a dupla Oscarito e Grande Otelo). Também definiu o ponto de equilíbrio orgânico entre a música e a ação.

A crítica odiou ainda mais o entretenimento absolutamente popular, mas com grandes pretensões, enquanto o público o aceitou muito bem, a despeito das avaliações pernósticas.

A Atlântida também produziu paródias criativas de super produções de Hollywood, sobretudo após a chegada de Carlos Manga, ex-assistente de Burle, que em 1954 dirigiu “Nem Sansão, Nem Dalila”, com Oscarito encarnando um Sansão caricato, e “Matar ou Correr”, faroeste que satirizava o clássico “Matar ou Morrer” (1952).

Infelizmente, todo Carnaval tem seu fim. O país passou por mudanças drásticas ao longo dos anos 1950. Muitos artistas migraram para a nova coqueluche de massa, a TV. O suicídio de Vargas e as turbulências políticas e econômicas que antecederam o golpe militar de 1964 destruíram a inocência do povo. A comicidade ingênua das chanchadas se tornava repetitiva demais. As marchinhas abriam alas à bossa nova e à jovem guarda.

O fim derradeiro do gênero se deu com a chegada da turma do cinema novo, que no início dos anos 1960 transformou a arte cinematográfica no Brasil, valendo-se de uma estética sem maquiagens e de temas áridos e urgentes. Os novos cineastas precisavam “matar o pai” para empreender as bases de um novo estilo.

Lançaram um cinema crítico, que enriqueceu as reflexões sobre um país humilhado e humilhante, que ganhou prêmios e mostrou o Brasil para as plateias do mundo, mas internamente afastou o público com seu hermetismo.

Em 1975, Carlos Manga prestou tributo a seus mestres no documentário “Assim Era a Atlântida”, que resgatava trechos dos filmes que sobreviveram a um incêndio e a uma inundação nos depósitos do estúdio, anos antes.

O legado da chanchada brasileira ainda reverberaria nas comédias eróticas dos anos 1970, chamadas pelos mesmos críticos de pornochanchadas —de pornô não tinham nada, mas abusavam do machismo e das piadas grosseiras. O gênero, vulgar num primeiro momento, teve seus subtextos e seu contexto histórico redimidos no documentário “Histórias que Nosso Cinema (não) Contava” (2018), de Fernanda Pessoa.

Na linha cronológica do cinema nacional, a partir dos anos 2000 vimos uma crescente produção de comédias derivadas dos enlatados produzidos pela TV, que levam para o cinema o cardápio de artistas consagrados em novelas e quadros cômicos voltados à massa, movimento parecido com aquela migração do rádio e do teatro de revistas, nos anos 1940.

O gênero já foi chamado à boca pequena de neochanchadas. O termo é tentador, mas incorreto, já que basta olharmos com atenção a maestria que nos legou Paulo Gustavo, ou conferirmos os trabalhos com o selo Porta dos Fundos, para entendermos que são produtos de grandes orçamentos, que geram repercussão, fidelizando uma parte do público que pode se sentir convidada a conhecer produções nacionais mais complexas. Chamá-las de chanchada seria repetir o ranço da crítica ancestral e diminuir sua importância comunicacional e econômica.

Há pouco tempo, era possível rever grande parte do legado da Atlântida no Banco de Conteúdos Culturais da Cinemateca Brasileira. Há quase um ano, contudo, o serviço está fora do ar, depois de uma queda de energia que desligou os equipamentos que mantêm o acervo online.

Cobrado a tomar providências urgentes, o atual secretário nacional da Cultura, Mario Frias, artista fracassado e ressentido, prefere bloquear os cidadãos que lhe fazem críticas em suas redes sociais. Se a covardia o faz seguir à risca a destruição da cultura assinada por seu chefe negacionista, é bom que não se esqueça de que seus patrões somos nós, que pagamos seu salário com nossos impostos.

Resta-nos agradecer aos que construíram nossa herança audiovisual e rechaçar os que detestam nos ver com um sorriso no rosto e uma marchinha na cabeça.

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