Biografia reafirma racismo em 'Os Sertões' e ilumina aventura amazônica de Euclides da Cunha

Novo livro demonstra a importância histórica e literária da viagem do escritor até as nascentes do rio Purus

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Fabiano Maisonnave

Na Folha desde 2001, foi correspondente em Campo Grande, Washington, Caracas e Pequim. É o correspondente para a Amazônia, com base em Manaus.

[resumo] Nova biografia examina Euclides da Cunha à luz das contradições de sua época e endossa as críticas a seu livro mais conhecido, “Os Sertões” —como trechos plagiados, passagens racistas e informações científicas erradas. Desmonta, além disso, o mito de que o escritor teria liderado as denúncias das atrocidades cometidas em Canudos e esmiúça a longa viagem pela Amazônia, que deu origem a seu trabalho mais inovador.

Sobra pouca vontade de revisitar “Os Sertões” após a leitura do recém-lançado “Euclides da Cunha: uma Biografia”. Por outro lado, o livro do diplomata e historiador Luís Cláudio Villafañe G. Santos ilumina a pouco conhecida aventura amazônica de Euclides, cuja vida ficou marcada pela obra clássica e pela morte dramática.

Lançada pela editora Todavia, a biografia endossa estudos prévios que já apontaram no autor de formação militar uma visão de mundo determinista e racista, calcada em informações científicas erradas e em trabalhos de terceiros que resvalam para o plágio.

Euclides da Cunha com outros membros da Comissão Mista Brasileiro- -Peruana de Reconhecimento do Alto Purus
Euclides da Cunha (no meio, o quinto da esq. para a dir.) com outros membros da Comissão Mista Brasileiro- Peruana de Reconhecimento do Alto Purus - Casa de Cultura Euclides da Cunha / São José do Rio Pardo (SP) - Reprodução

Santos vai além e desmonta o mito de que Euclides liderou as denúncias das atrocidades do Exército cometidas contra a comunidade de Belo Monte (Canudos). Em vez disso, nota o biógrafo, “Os Sertões”, publicado em 1902, cinco anos após o fim da Guerra de Canudos, “ofereceu à opinião pública um crime sem criminosos”.

Essa contextualização histórica é um dos grandes méritos do quarto livro de Santos sobre a virada do século 19 para o século 20. Desse período inicial do Brasil republicano, que consolida a ingerência militar na política, ele recupera episódios com fortes paralelos aos dias de hoje, como a ameaça do marechal presidente Floriano Peixoto de prender os juízes do STF caso eles concedessem habeas corpus a presos políticos, em 1892.

Santos também conta em detalhes a longa viagem de Euclides pela Amazônia, após ser nomeado pelo barão do Rio Branco para chefiar a comissão mista brasileiro-peruana, criada para dirimir a disputa territorial entre os dois países na remota região do Alto Purus, atual Acre.

Na epopeia, Euclides se impressionou com as péssimas condições de trabalho nos seringais, em um momento em que a borracha era o segundo produto mais importante do país, depois do café. “O seringueiro realiza uma tremenda anomalia: é o homem que trabalha para escravizar-se”, escreveu.

O projeto de escrever um livro sobre a Amazônia, no entanto, não chegou a se concretizar. Em 1909, Euclides tentou assassinar o amante de sua mulher, Dilermando de Assis, mas acabou morto pelo rival, aos 43 anos.

Mapa do território disputado entre Brasil, Bolívia e Peru, de autoria de Euclides da Cunha (1909) - Casa de Cultura Euclides da Cunha / São José do Rio Pardo - SP / Reprodução

Os escritos sobre a aventura até o Purus foram publicados postumamente, sob o título “À Margem da História”, mas com pouca repercussão. Em 2019, ganhou uma cuidadosa edição da Editora Unesp.

A seguir, a entrevista concedida por Santos via email, de Manágua, onde ocupa o cargo de embaixador do Brasil na Nicarágua.

A biografia faz uma descrição pouco lisonjeira da produção de “Os Sertões”. Menciona trechos plagiados, expõe uma visão racista contra negros e indígenas e relembra informações científicas erradas. Como o sr. explica o estrondoso sucesso do livro na época de seu lançamento e a permanência da obra como clássico? Muitos estudiosos já apontaram apropriações de textos de terceiros por Euclides em longas paráfrases, sem atribuição da fonte original, e não somente em “Os Sertões”, mas ao longo de toda a sua obra literária e jornalística. Do mesmo modo, as graves lacunas, a pouca profundidade e as contradições internas de muitas de suas explicações científicas, muito além da terrível visão racista e determinista, são também bem conhecidas entre os especialistas.

Vale dizer, aliás, que essas falhas são claras mesmo em relação aos padrões da ciência daquela época, ou mesmo da ciência de então que chegava ao Brasil. Como disse certa vez a professora Walnice Galvão, grande estudiosa da obra: “Toda aquela ciência de ‘Os Sertões’, mal digerida, é de orelhada, de banco escolar”.

Ainda que inicialmente uma das grandes novidades de “Os Sertões” tenha sido que o livro foi tomado como grande exemplo do “consórcio da arte com a ciência”, a validade do teor científico da obra nos diversos campos —geologia, geografia, botânica, antropologia, sociologia e história— foi perdendo prestígio com o tempo, em alguns casos mais rapidamente e em outros menos.

Há muitos fatores extraliterários que explicam o sucesso e a permanência do livro, os quais eu exploro com cuidado na biografia, mas também, naturalmente, o fator mais importante da permanência é a própria qualidade estética e literária do texto e sua força narrativa.

​Ainda que os primeiros leitores o fizessem, lá atrás, na Grécia clássica, ninguém acredita hoje, por exemplo, que Ulisses realmente enfrentou sereias e ciclopes, mas o poder literário da “Odisseia” segue muito vivo, ainda que sempre se modificando e se renovando com a passagem do tempo.

Euclides da Cunha, de formação militar, viveu em uma época em que o Exército passou a ter protagonismo nacional, incluindo a Proclamação da República (1889) e o massacre de Canudos (1896-1897). O que os militares propunham para o Brasil e como Euclides interagiu com essa visão de mundo? O tema dos militares e da República é muito vasto e já foi tratado por muitos grandes historiadores, como o professor José Murilo de Carvalho, entre outros. A questão é abordada apenas lateralmente na biografia, à medida que a formação de Euclides na Escola Militar da Praia Vermelha e seus anos como engenheiro-militar influíram muito em sua visão de mundo.

O positivismo que prevalecia na Escola Militar logo seria mitigado, e a própria relação de Euclides com o Exército é complexa, mas ele chegou a ser um florianista convicto. Considerou por muitos anos a ideia de que a República, para atingir, em um futuro não determinado, um patamar de estabilidade, modernidade e progresso, necessitaria, ainda que de forma transitória, de um governo forte, autoritário e austero, liderado por um militar ou uma figura ditatorial.

É uma fábula absurda que fracassa invariavelmente a cada vez que se tem a infelicidade de buscar esse caminho, mas ainda assim segue sendo repetida até hoje.

A opinião pública brasileira da época, incluindo de início Euclides, comprou a teoria conspiratória de que Canudos era uma tentativa de restaurar a monarquia com ajuda externa. Há algum paralelo com a atual ressonância de ameaças inexistentes, como o comunismo e o globalismo? Os livros de história e, no caso, as biografias são discursos sobre o passado, mas escritos para e lidos pelas pessoas do presente. No atual contexto, é importante relembrar e rediscutir as condições que levaram a sociedade brasileira de então a, de maneira geral, apoiar o massacre de milhares de pessoas inocentes com base em versões absolutamente fantasiosas e evidentes distorções da realidade.

O episódio mostra que pessoas relativamente bem-informadas e de bom coração podem acabar participando com paixão desses delírios coletivos. Aliás, o próprio Euclides também foi vítima e importante propagador daquela percepção absurda da realidade .Inclusive, a visão amplamente difundida de que ele, chegando ao interior da Bahia e testemunhando a guerra, reformulou sua posição é uma mistificação.

Como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, ele apoiou até o fim a ação militar contra os seguidores de Antônio Conselheiro. Quando publicou “Os Sertões”, cinco anos depois, e finalmente passou a condenar a guerra e a caracterizá-la como um crime, a denúncia já havia sido feita, com muita veemência, por diversos outros autores, jornalistas e intelectuais.

Ao contrário do que geralmente se acredita, “Os Sertões” foi menos uma obra que tenha servido para denunciar o massacre dos sertanejos e, paradoxalmente, mais um livro que serviu para aplacar o mal-estar geral que passou a existir quando se consolidou a ideia do absurdo da mortandade.

O livro chega depois do estabelecimento desse mal-estar e, portanto, não o provoca. Ao contrário, iria contribuir para sua superação, pelas razões que aponto no livro.

O sr. argumenta que a produção de Euclides sobre a Amazônia foi mais inovadora e consistente do que “Os Sertões”, mas a repercussão de “À Margem da História” foi muito menor. Por que não foi “um livro vingador”, como Euclides aspirava? Euclides não chegou a escrever seu segundo “livro vingador”, que seria sobre a Amazônia. Em “À Margem da História”, publicado postumamente, há textos sobre a região que dão uma ideia do que poderia vir a ser o livro não escrito.

Pelo que se depreende daqueles textos, o livro, cujo nome seria “Um Paraíso Perdido”, traria uma denúncia apaixonada sobre as más condições de vida dos seringueiros da Amazônia, que viviam um processo de escravidão por dívida: “A mais criminosa organização do trabalho que ainda engendrou o mais desaçamado egoísmo”.

Euclides tinha uma visão clara do problema e propunha soluções práticas para melhorar a vida daqueles trabalhadores. Ao contrário dos sertanejos de “Os Sertões”, já mortos, muito poderia ser feito em prol dos seringueiros. No entanto, a denúncia feita de forma embrionária, mas já clara, em “À Margem da História” esbarrava em interesses econômicos e políticos concretos.

A borracha era o segundo item da pauta de exportações brasileiras, e muitos se beneficiavam da virtual escravização dos seringueiros. Ainda que àquela altura Euclides já fosse um escritor de imenso prestígio, em maior evidência por conta da morte trágica, ocorrida pouco antes da publicação do livro, a denúncia caiu no vazio.

Euclides viajou ao palco dos conflitos por causa das boas relações entre o dono do jornal O Estado de S. Paulo e o presidente da época, Prudente de Morais. O barão do Rio Branco usava uma verba secreta do Itamaraty para garantir boa cobertura no Jornal do Commercio. A imprensa da época era apenas uma extensão das correntes políticas? As relações entre imprensa e poder são um grande tema, objeto de boas pesquisas feitas por especialistas. Ontem como hoje, a despeito do mito da imparcialidade, os órgãos de imprensa sempre têm visões políticas e é natural que seja assim.

Não ser imparcial, entretanto, não quer dizer, necessariamente, não ser objetivo (ainda que mesmo a objetividade seja sempre relativa) e, obviamente, em geral, a imprensa de hoje é mais profissional.

Eu trato da questão, no âmbito de um enfoque biográfico, com mais detalhe na biografia “Juca Paranhos - o Barão do Rio Branco” (Companhia das Letras). O barão usava elementos de troca —empregos, favores e até dinheiro— no trato com jornais e jornalistas, dos quais, naturalmente, Euclides não dispunha.

O autor de “Os Sertões” escreveu em muitos jornais de seu tempo e desfrutou de uma relação pessoal com Júlio de Mesquita que lhe abriu as portas de O Estado de S. Paulo desde o tempo em que o jornal ainda era A Província de São Paulo. Essa relação, contudo, teve altos e baixos, de acordo com o maior ou menor alinhamento de Euclides com a linha do jornal em cada momento.

No final, Euclides escrevia com mais frequência para o Jornal do Commercio, um órgão semioficial para Rio Branco, não apenas porque o barão eventualmente concedesse benefícios ao jornal.

Além de amigo de longa data do dono, ele escrevia sob pseudônimo ou anonimamente com grande frequência no jornal, fornecia informações muitas vezes exclusivas e praticamente ditava sua linha editorial para assuntos de política externa.

Um aspecto pouco conhecido de Euclides foi o seu trabalho no Itamaraty, sobretudo o longo período que passou na Amazônia pela comissão Brasil-Peru. Qual foi sua importância como assessor do barão do Rio Branco nessa disputa territorial? Justamente, além de um novo olhar sobre assuntos já mais conhecidos —como a elaboração de “Os Sertões”, fatos e circunstâncias da vida familiar e conjugal e o episódio de sua morte— o livro relata, em um grau totalmente inédito de detalhe e com informações até agora desconhecidas, a viagem de Euclides até as nascentes do rio Purus, chefiando a parte brasileira da comissão brasileiro-peruana e o relativamente longo período em que ele trabalhou no Itamaraty, sob as ordens do barão do Rio Branco.

Há episódios saborosíssimos dessa última fase da vida do escritor que até agora ou eram simplesmente desconhecidos ou estavam totalmente descontextualizados.A importância de Euclides na resolução da questão fronteiriça com o Peru, por exemplo, é algo que até agora havia passado completamente despercebido.

Além do trabalho da Comissão do Purus, que deu elementos para o ajuste da fronteira, Euclides desenhou os mapas que se usaram nas negociações e depois os que se levaram ao Congresso para a ratificação do tratado.

Também muito importante nesse contexto é a história daquele que seria o segundo livro de Euclides, e o primeiro a ser traduzido para uma língua estrangeira: o hoje desconhecido e quase impenetrável “Peru versus Bolívia”, escrito por encomenda do Rio Branco e, ao contrário do que se imagina, mais destinado a ter um efeito na política interna brasileira do que na política externa.

Finalmente, uma pergunta sobre a morte de Euclides, que tentou matar Dilermando de Assis anos após se inteirar do caso amoroso de sua mulher. Em depoimento, a viúva diz que o marido era um “apaixonado pela sua reputação”. Essa foi a principal motivação do escritor ao atacar Dilermando? A declaração da esposa, Ana, se deu no contexto do inquérito policial para investigar a morte do escritor. Ela deixou claro que Euclides já sabia do caso extraconjugal havia muito tempo, pois o código penal previa até três anos de cadeia no caso de adultério (aliás, só deixou de ser considerado crime há relativamente poucos anos).

Não haveria processo caso o marido traído houvesse dado sinais de ter perdoado a falha, com a continuidade da coabitação, por exemplo. Ou seja, era importante provar que a tentativa de assassinar Dilermando não foi um impulso repentino diante da recente descoberta do caso.

Ana tinha toda razão quanto à obsessão de Euclides pela própria reputação. Ele sabia da traição desde, pelo menos, julho de 1906, quando nasceu o primeiro filho dela com Dilermando (que viveu poucos dias).O romance com Dilermando seguiu de forma intermitente porque ele viveu na maior parte desse tempo em Porto Alegre e, ainda assim, eles tiveram outro filho, Luís, no ano seguinte, que Euclides também soube que não era dele. Ana vinha propondo a separação a Euclides desde 1906, mas ele preferia ir mantendo as aparências sem resolver a questão.

Quando Dilermando retornou ao Rio, ficou impossível evitar o escândalo público. Euclides chegou a tentar “devolver” a esposa à mãe e à família, como se fora um brinquedo quebrado. Afinal, ela decidiu abandonar o lar e aconteceu o desenlace trágico.É de registrar que Euclides não estava alucinado pela descoberta inesperada da traição quando saiu de casa para assassinar Dilermando e, provavelmente, depois a própria Ana. Tampouco ocorreu um duelo, no sentido estrito, como muitas vezes é dito.

Ainda que já proibidos, os duelos eram relativamente comuns e aceitos socialmente: com padrinhos, regras etc. Euclides na certa terminaria morto ou ferido, pois Dilermando era campeão de tiro e um bom espadachim.

Ele decidiu, assim, assassinar o rival à traição, pois levava a arma oculta quando chegou à casa de Dilermando (onde estava Ana) e entrou no quarto do amante da mulher já atirando. Este reagiu e acabou matando o escritor. Dilermando cometeu um homicídio, e não um assassinato, e claramente em legítima defesa.

Cabana Euclides da Cunha, em São José do Rio Pardo (SP), na qual ele escreveu "Os Sertões"
Cabana Euclides da Cunha, em São José do Rio Pardo (SP), na qual ele escreveu "Os Sertões" - Reprodução

Esta é a sua quarta obra sobre a virada do século 19 para o 20, incluindo a biografia do barão do Rio Branco. Por que esse fascínio pelo período e como ele ressoa nos dias de hoje? As últimas décadas do século 19 e o início do seguinte são anos cruciais para a formação da nacionalidade brasileira, e a influência desses anos se estende até os dias de hoje. No Brasil imperial, a despeito da idealização da monarquia hoje em moda, não poderia haver uma nação brasileira no sentido que entendemos essa expressão hoje.

Era ainda uma sociedade do Antigo Regime, em que a diferença e a hierarquia entre as pessoas eram vistas como algo natural, um ato de Deus. Os brasileiros eram os súditos do mesmo imperador, nascidos no mesmo território e crentes da mesma fé. Não havia necessidade de um sentido de “brasilidade” ou mesmo de cidadania compartilhado por todos.

Com a decadência da legitimidade dinástica, foi preciso acompanhar o resto dos países do Ocidente e passar a legitimar o Estado com base na ideia de nação e de um povo que compartilharia alguma essência comum. Era uma tarefa muito difícil inventar essa nacionalidade, e a forma como se encaminhou esse projeto naqueles anos está na raiz de muitas das características e dificuldades da sociedade brasileira atual.

É um período fascinante, com personagens muito interessantes e discussões instigantes. Cada biografado é uma janela para enxergar parte desse universo, e meus outros livros mais acadêmicos buscam iluminar aspectos específicos, com cortes e pontos de vista diferentes. É uma tarefa interminável e apaixonante. Tenho grande gosto em abrir algumas dessas janelas. ​

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