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Descrição de chapéu Reforma do Estado

Falta de foco, erros técnicos e excessos comprometem reforma do Estado

Em evento promovido pela USP, professores discutiram as propostas do governo federal

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São Paulo

O conjunto de três Propostas de Emenda à Constituição (PECs) para a reforma do Estado enviadas pelo governo federal ao Senado, em novembro, apresenta uma série de erros técnicos, imprecisões e exageros. As impressões são de juristas e professores que se reuniram nesta quarta-feira (11) em um evento promovido pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, com o apoio da Folha.

Divididos em três mesas de debate, os convidados discutiram as PECs 186, 187 e 188 que tratam, respectivamente, dos gatilhos para contenção de gastos em caso de emergência fiscal, da avaliação e extinção dos fundos públicos e do chamado pacto federativo. Também foi discutida a reforma administrativa que deve remodelar o funcionalismo público no Brasil, mas que ainda não foi oficialmente apresentada pelo governo.

“Estupraram a Constituição”, criticou o professor de direito financeiro da USP Heleno Taveira Torres. Segundo ele, os “textos longuíssimos” e o “uso exagerado de termos ambíguos e contraditórios” revelam um conteúdo “precário em soluções técnicas”.

Para Torres, os problemas das PECs também estão relacionados ao conteúdo. “São propostas paliativas, que não resolvem problemas e, pelo contrário, agridem fortemente os direitos sociais”, afirmou. Exemplo de agressão, segundo o professor, é a proposta de somar os pisos que União, estados e municípios têm que destinar a saúde e educação.

Professor de direito público da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, Carlos Ari Sundfeld classificou os textos das PECs como uma confusão generalizada. “Não se entende o que está escrito”, disse. Sundfeld direcionou suas críticas ao que já chegou ao conhecimento público sobre a proposta de reforma administrativa, que foi adiada e deve ser apresentada pelo governo em 2020.

Na visão do jurista, propostas como a redução de jornada e salários dos servidores públicos quando a União descumprir a regra de ouro, que proíbe o Executivo de se endividar para pagar despesas correntes, não têm efeito prático se não vierem acompanhadas de um sistema mais eficaz de avaliação de desempenho no funcionalismo.

“Vou cortar 25% das horas dos professores e mandar as crianças para casa? Não, eu preciso cortar 25% daquilo que não funciona. Como é que se descobre isso? Só se fizer avaliação de desempenho”, disse Sundfeld.

Gustavo Justino de Oliveira, da USP, acredita que a reforma administrativa é uma “discussão não palatável”. O presidente Jair Bolsonaro afirmou que aguarda uma melhora no clima político para que a proposta não gere uma reação negativa do Legislativo. “Vamos ver o quanto o obstáculo do corporativismo vai frear essa intenção do Ministério da Economia em relação à reforma do funcionalismo público”, disse.

Para o professor de direito administrativo, também faltam evidências que sustentem uma proposta de reformas “tão enérgicas”. “Não há necessidade de reforma constitucional com esse teor, porque para isso, precisamos de alguns consensos”, afirmou. Para Oliveira, os consensos no funcionalismo público tendem a existir apenas quando são favoráveis aos servidores.

A proposta do governo de incorporar às cidades vizinhas os municípios com menos de 5.000 habitantes e arrecadação própria menor que 10% da receita total também foi tema de discussão entre os palestrantes.

“Em vez de forçar que os municípios existam ou deixem de existir por esses critérios frágeis, o melhor seria dizer que os municípios não são entes da Federação”, sugeriu o professor de direito administrativo Fernando Dias Menezes de Almeida, da USP. 

Para ele, não é possível comparar municípios de tamanhos e populações diferentes e esperar que eles mantenham as mesmas estruturas de governança. Almeida também defendeu que a Constituição permita outros arranjos federativos, como a administração dos municípios pelos estados e a união fiscal entre municípios para a solução de problemas compartilhados. “O engessamento de uma mesma fórmula para todos os municípios me parece ruim”, afirmou.

A justificativa da sustentabilidade financeira parte de um pressuposto equivocado, de acordo com Fernando Facury Scaff, da USP. “A arrecadação dos municípios, tal como a dos estados, não é apenas tributária, mas também de receitas transferidas. Os diversos tributos são rateados, direta ou indiretamente, pelos demais entes subnacionais”, explicou Scaff.

Segundo o professor de direito financeiro, a União tende a tratar a receita transferida como uma esmola dada a estados e municípios, o que seria um “erro de perspectiva”. Para Scaff, a proposta de extinção de cidades sem consulta à população é “extremamente autoritária”.

A amplitude das propostas apresentadas pelo governo em um único conjunto de PECs também foi alvo de críticas. Uma “metralhadora giratória”, definiu Clovis Bueno de Azevedo, professor do Departamento de Gestão Pública da FGV-SP. “Ou vai se virar as coisas de ponta cabeça e depois passar a limpo a soma de tudo ou não se sabe muito bem qual é o foco e o que se quer reformar”, disse.

O conjunto de propostas faz parte de uma “agenda de comunicação e politicagem” do governo Bolsonaro, de acordo com Marcos Augusto Perez, professor de direito administrativo da USP. “O governo é movido em grande medida pela comunicação que se dá, preponderantemente, pelas redes sociais, voltada a mobilizar um exército para apoiar tudo que o governo diz, pensa e defende, independentemente de ser bom ou ruim”, afirmou.

No mesmo sentido, o professor  de administração pública Fernando Rezende, da FGV-RJ, comparou a falta de planejamento do governo brasileiro para a adoção de medidas que “botam lenha ou areia na fogueira" à personagem central de “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carrol (1832-1898). “Quando Alice chega no gato socrático e pergunta qual é a saída, o gato responde que a saída depende de para onde você quer ir.”

O evento desta quarta (11) faz parte de um conjunto de ações da Faculdade de Direito da USP para estimular a discussão pública sobre as propostas do governo, explicou Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto, diretor da faculdade. 

A participação pública foi defendida pela jornalista da Folha Alexa Salomão, editora de Mercado, que mediou os debates. Segundo ela, “o país está apartado da discussão” e as PECs estão limitadas ao diálogo entre governo e líderes do Congresso. “É uma reforma de um pequeno clube de pessoas. Por mais que os jornais falem sobre o que está acontecendo, às vezes a repercussão é zero", disse.

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