Bolsonaro comete crime de responsabilidade em ato contra Folha, diz diretor da Faculdade de Direito da USP

Para Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto, presidente contraria lei de licitações ao excluir jornal de disputa sem justificativa plausível

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São Paulo

Ao excluir a Folha de uma licitação do governo federal sem uma justificativa plausível, o presidente Jair Bolsonaro pode ter violado a lei de licitações e cometido crime de responsabilidade. A avaliação é do professor de direito administrativo da USP Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto.

"Na lei de licitações você não pode discriminar ou propor uma compra que discrimine algum fornecedor. Você não pode nem escolher quem vai ganhar nem excluir alguém sem uma justificativa plausível", diz Floriano.

O presidente Bolsonaro durante evento do Dia do Enfrentamento à Violência contra a Mulher, no Palácio do Planalto
O presidente Bolsonaro durante evento do Dia do Enfrentamento à Violência contra a Mulher, no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira - 25.nov.19/Folhapress

A Presidência da República excluiu a Folha da relação de veículos nacionais e internacionais exigidos em um processo de licitação para fornecimento de acesso digital ao noticiário da imprensa. No dia 31 de outubro, Bolsonaro anunciou que havia determinado o cancelamento de todas as assinaturas da Folha no governo federal.

Edital do pregão eletrônico publicado nesta quinta-feira (28) no Diário Oficial da União prevê a contratação por um ano, prorrogável por mais cinco, de uma empresa especializada em oferecer a assinatura dos veículos à Presidência.

A lista cita 24 jornais e 10 revistas. A Folha não é mencionada. O pregão eletrônico, marcado para 10 de dezembro, tem um valor total estimado de R$ 194 mil: R$ 131 mil para jornais e R$ 63 mil para revistas.

Bolsonaro também propôs boicote aos anunciantes do jornal. "Eu não quero ler a Folha mais. E ponto final. E nenhum ministro meu. Recomendo a todo Brasil aqui que não compre o jornal Folha de S.Paulo. Até eles aprenderem que tem uma passagem bíblica, a João 8:32 [E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará]. A imprensa tem a obrigação de publicar a verdade. Só isso. E os anunciantes que anunciam na Folha também."  

A exclusão da Folha do edital de licitação gerou protestos de entidades de imprensa, que classificaram a decisão como um atentado à liberdade de imprensa. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), também afirmou que é equivocada a decisão da Presidência e que é uma sinalização ruim para quem quer investir no país.

O subprocurador-geral junto ao TCU (Tribunal de Contas da União), Lucas Furtado, apresentou nesta sexta-feira (29) representação em que pede que a Folha não seja excluída da licitação da Presidência para o fornecimento de acesso digital ao noticiário da imprensa. Para Furtado, a decisão do governo possui motivos que “desbordam dos estreitos limites da via discricionária do ato administrativo”, além de ofender os “princípios constitucionais da impessoalidade, isonomia, motivação e moralidade”.

Após ameaçar a Folha, Bolsonaro disse nesta sexta-feira que o país vive “ares de democracia e liberdade”.

O senhor reconhece nos ataques do presidente Bolsonaro à Folha algum tipo de violação legal? São três condutas, cada uma com problema próprio. A primeira conduta é de proibir ou cancelar a assinatura do jornal.

Essa primeira conduta do presidente até poderia ser justificável, vamos imaginar que se tivesse cancelado todas as assinaturas dos jornais por contenção de despesas, mas acompanhando da entrevista que ele deu, da justificativa que ele deu, esta claramente é desvio de finalidade, uma situação tipificada na lei da autoridade que age no exercício de uma competência buscando uma finalidade distinta daquela que justificaria o ato.

Então, num primeiro caso, cancelar assinatura de um jornal porque esse jornal não lhe é simpático é um caso de evento de desvio de curso, de desvio de finalidade.

Quais as outras condutas que podem ter violado leis? A segunda conduta, de não colocar o jornal no edital de licitação para compra de assinatura de jornal, aí você tem uma violação à lei de licitações, porque na lei de licitações você não pode discriminar ou propor uma compra que discrimine algum fornecedor.

Você não pode nem escolher quem vai ganhar nem excluir alguém sem uma justificativa plausível. Então é claro que ele não vai fazer uma licitação para uma compra de jornal e comprar um jornal médico, porque o objetivo é comprar noticiosos gerais, mas dentro dos noticiosos gerais a exclusão fere a lei de licitações porque fere um princípio basilar que é você impedir a restrição por um caráter subjetivo, ou para dar vantagem ou para prejudicar alguém que você não gosta.

E o terceiro caso, que é pressionar anunciantes, aí tem claramente um caso de abuso de autoridade, quando o presidente ou qualquer líder, qualquer dirigente do Executivo exerce suas atribuições, suas prerrogativas para prejudicar alguém ou para conseguir um fim pessoal, um benefício ou a perseguição de alguém. Essas três condutas, ao meu ver, desafiam fortemente a ordem jurídica, não só da Constituição mas também leis específicas e diretas.

O que pode acontecer com o presidente? O presidente pode ser acusado de estar praticando um crime de responsabilidade ou um ato de improbidade. Além de improbidade várias dessas condutas estão claramente tipificadas como atos ilegais. 

Qual o caminho para se responsabilizar o presidente da República? O prejudicado primeiro teria que provocar o Ministério Público, seja no sentido de fazer uma denúncia sobre a prática do ato de improbidade ou para fazer uma denúncia pela prática de crime de responsabilidade. Em ambos os casos quem tem competência para isso é o Ministério Público.

De outro lado, no caso por exemplo do edital, o jornal ou órgão de imprensa prejudicado pode entrar ou com mandado de segurança para anular o ato que o exclui, ou para obrigar o presidente para que inclua o jornal na licitação, ou no que tange à exclusão ou à vedação de compra de jornal, pode-se entrar com ação popular —qualquer cidadão com seus direitos políticos— alegando que ele está praticando um ato que é ilegal e portanto, em última instância, pode causar um prejuízo, ainda que não direto, um prejuízo ao poder público.

No caso da responsabilização pessoal tem que ser via Ministério Público, no caso de desfazimento e do combate aos atos ilegais pode ser o próprio particular prejudicado.

E qual seria a consequência? O que aconteceria com o presidente caso condenado num caso desses? Se for condenado por crime de responsabilidade pode chegar até o impedimento do presidente. Por ato de improbidade ele pode ser condenado a pagar uma multa, ter seus direitos políticos cassados, uma série de consequências pessoais para ele.

Qual sua opinião sobre os ataques do presidente contra a Folha? Antes de tudo é uma conduta que, primeiro, transcende aquilo que é esperado de um presidente da República e, segundo, que se caracteriza numa clara manifestação de censura e retaliação a um órgão de imprensa pelo simples fato de que este órgão de imprensa não lhe é simpático, ou teoricamente não faz noticiamento, uma divulgação que o dirigente possa considerar interessante, cabível, adequado ou conveniente para ele. É uma das formas talvez mais explícitas de praticar censura.

E o senhor vê algum atentado à democracia neste ato? Sim, claro, da mesma forma que eu estou punindo um jornal, estou praticando um atentado à liberdade de imprensa porque imediatamente estou passando a mensagem a todos os meios independentes de imprensa de que, se eles não agirem como os mandatários acham adequado, podem ser vítimas da mesma retaliação.

Portanto, para além dos riscos específicos dessa conduta, gera uma forte violação à liberdade de imprensa, que como nós sabemos é uma das bases do Estado de Direito. 

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