Holocausto se torna ingrediente para novas alianças geopolíticas em meio à Guerra da Ucrânia
Kremlin evoca mito de que verdadeiras vítimas do nazismo foram russos cristãos
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Quando o chanceler russo, Serguei Lavrov, disse que acreditava que Adolf Hitler "tinha sangue judeu", colocou mais lenha na fogueira da memória do Holocausto, que incendeia as agendas político-ideológicas contemporâneas.
Anteriormente, o presidente Vladimir Putin havia falado em "desnazificar" a Ucrânia para justificar a invasão ao país vizinho. Mas não só ele. O presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, também recorreu ao expediente para apresentar sua versão dos fatos.
Em discurso ao Parlamento israelense, comparou a invasão russa à Alemanha nazista, chamando a atenção para a similaridade dos termos usados agora e no passado. "Ouçam o que o Kremlin diz. Apenas ouçam! [...] Exatamente como foi dito 80 anos atrás", afirmou.
A declaração de Lavrov foi uma resposta a um jornalista italiano que questionava como a Ucrânia poderia ser nazista sendo o seu presidente, eleito com 70% dos votos, judeu —inclusive com parentes assassinados no Holocausto.
É claro que a diplomacia russa não desconhece a filiação étnico-religiosa de Zelenski e sabia que ela seria acionada na construção de uma contranarrativa ucraniana. Como explicar, então, a insistência nessa ideia?
A decisão foi baseada na consciência de que, para determinados ouvidos —e para os ouvidos que realmente importavam—, a judeidade de Zelenski não serviria de contraponto ao ideário nazista. Ao contrário, talvez até o reforçasse. Isso porque, a depender do contexto local, variam as simbologias e as memórias em relação ao nazismo e ao Holocausto.
Assim, ao fazer referência à "desnazificação", no caso de Putin, e do "sangue judeu" de Hitler, no caso de Lavrov, o Kremlin evocou um mito de ampla circulação na sociedade russa e em países da Europa do leste, segundo o qual as verdadeiras vítimas do nazismo foram os russos cristãos, não os judeus.
A memória sobre o passado, como se sabe, está em construção permanente, é atravessada por disputas e mobilizada para fins do presente. E não é única. A crença de que Hitler tenha ancestrais judeus se origina em uma entre as diversas especulações que surgiram diante da ausência de informações sobre seu avô paterno.
Lavrov foi ainda mais além, ao afirmar, na mesma entrevista, que "o sábio povo judeu já disse que os antissemitas mais ardentes são geralmente judeus".
Ecoando teorias conspiratórias do passado, como a dos Protocolos dos Sábios de Sião, e aquelas vigentes na contemporaneidade, como a de que, caso o Holocausto tenha mesmo existido, os judeus é que teriam sido responsáveis por ele, o chanceler transformou vítimas em algozes, reescrevendo a história a partir de uma narrativa específica que desafia a ocidental hegemônica.
Na geopolítica contemporânea, diferentes memórias do Holocausto podem costurar a identidade dos blocos globais.
Se, em linhas gerais, o consenso em relação ao legado do Holocausto unifica as democracias liberais no período pós-Segunda Guerra, em especial União Europeia e Estados Unidos, o posicionamento russo tem em vista amalgamar uma nova frente geopolítica tradicionalista formada por Rússia, China e Irã.
Nessa perspectiva, as democracias liberais, com suas pautas identitárias, percebidas como decadentes, são as inimigas e confundem-se com determinada judeidade, que nessa "nova" memória do Holocausto é classificada por adversários como "nazista".
Dado o papel que o nazismo e o Holocausto têm exercido no debate público global, algumas instituições como a Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA), que foram criadas para a salvaguarda dessa memória, têm alertado contra sua banalização. O importante é não deixar de ver a existência de nazistas de verdade. No caso de Ucrânia e Rússia, encontram-se de ambos os lados da fronteira.
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