Descrição de chapéu
China Rússia

Aliança de Putin e Xi desafia o Ocidente, mas tem limites

Em meio à crise da Ucrânia, líderes da China e da Rússia se encontram pessoalmente

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

A tumultuada história da relação entre Rússia e China entra em uma nova etapa nesta sexta-feira (4), quando o presidente Vladimir Putin irá se encontrar com o líder Xi Jinping pela primeira vez desde o começo da pandemia de Covid-19, há dois anos.

A hipérbole é aplicável. Após anos de aproximação cautelosa, Moscou e Pequim se colocam prontas para se mostrar ao mundo como um polo alternativo ao que acusam de hegemonia artificial do Ocidente, Estados Unidos à frente.

Putin acena a Xi durante conferência por vídeo realizada no fim do ano passado
Putin acena a Xi durante conferência por vídeo realizada no fim do ano passado - Mikhail Metzel - 15.dez.21/Spuntik/AFP

O palco será a abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim, de resto boicotados pela diplomacia ocidental, com a alta tensão em torno da Ucrânia como pano de fundo. Putin e Xi trocarão afagos, depois de terem defendido em fórum virtual uma união contra o Ocidente.

Não é algo que surgiu do nada. Basta ler qualquer discurso de Putin a partir da fala do russo em Munique, em 2007, que marcou o fim de tentativas de acomodação com o Ocidente e a Otan, seu braço armado. Ou as intervenções cada vez mais assertivas de Xi, no poder desde 2012, acusando Washington de romper o concerto multilateral do pós-guerra em favor de sua agenda.

Do ponto de vista de racionalidade política, os dois estão certos. Toda a agenda internacional após a derrota da União Soviética na Guerra Fria, em 1991, baseou-se na dinâmica dos interesses americanos —por extensão, nem sempre harmônica, de seus aliados.

Washington subestimou por muito tempo dois fatores. O mais importante, a ascensão chinesa que ironicamente nasceu de uma iniciativa conjunta sino-americana contra os soviéticos.

Apenas a aceleração brutal do peso chinês na economia mundial, nos anos 2000, acendeu os alertas. Com a pujança, interligada que é com as cadeias de comércio ocidentais, veio a pretensão político-militar, encarnada em Xi.

Em 2017, Donald Trump vocalizou a reação a isso e lançou a Guerra Fria 2.0, buscando dar um norte confrontacional a sua política externa e arrumando briga de fábrica de chips a consulados chineses, de Hong Kong ao mar do Sul da China.

O segundo ponto subestimado pelos EUA foi o ressurgimento russo. Claro, não há nem sombra do império comunista e sua força de desafiar os americanos por procuração em cantos tão diversos do mundo quanto Cuba, Vietnã ou na Alemanha dividida.

Mas os americanos viram na destruição moral e física da Rússia dos anos 1990 um processo irreversível, o que foi provado um erro a partir da ascensão de Putin. Inicialmente interessado em cooperação como um igual com o Ocidente, o russo foi ignorado, e a Otan abocanhou diversos ex-satélites soviéticos.

Montado numa poderosa indústria de petróleo e gás, Putin moldou o arcabouço político e se firmou como um czar, sobrevoando as disputas internas da Rússia. Legitimou seu poder reconstruindo o poderio militar do país que, além de um arsenal nuclear comparável ao dos EUA, tem uma máquina convencional bastante azeitada.

China e Rússia não são aliados naturais, ao contrário. As vastas fronteiras desabitadas de seu país na Ásia sempre foram preocupação para Putin. Seus esforços de ocupação, contudo, trouxeram resultados frágeis, resumidos no esvaziado campus da Universidade do Extremo Oriente, em Vladivostok.

Com efeito, os dois países quase foram à guerra em 1969. O constante entrechoque com o Ocidente, denunciado em Moscou e Pequim como imperialismo e em Washington como uma luta contra uma ditadura comunista e uma autocracia personalista, gestou a nova aliança.

Há certamente ironia no fato de que os grandes defensores do sistema multilateral hoje sejam dois países bastante distantes do conceito de liberdades individuais e democracia liberal, com históricos de repressão a direitos humanos diversos.

Até aqui, não há exatamente uma grande lista de seguidores de Moscou e Pequim —no caso de Xi, há uma de clientes, o que é diferente. Na realidade, esse parece ser mais um objetivo secundário, sendo o primário o fim da hegemonia presumida dos EUA.

O balé entre as duas potências não é uma união clássica. Os russos têm horror histórico a acordos militares: os dois que fizeram nos séculos 19 e 20 ao fim viabilizaram as invasões francesa e nazista, respectivamente. Além disso, como explica um diplomata moscovita com larga experiência em Pequim, há uma incompreensão cultural mútua.

Por outro lado, a forja da pressão ocidental tem servido como poderoso incentivo de aproximação. Ela já tem diversos aspectos bélicos: os russos ajudaram os chineses a montar um sistema de alerta contra ataques nucleares e são os fornecedores primários de material militar para o aliado, além de promover manobras conjuntas frequentes.

O centro de tudo, e também um fator limitante na relação, é a economia. O fluxo de comércio entre Moscou e Pequim cresceu 167% de 2010 a 2021, atingindo o recorde de US$ 147 bilhões no ano passado. Os crescentes negócios na área de hidrocarbonetos ditam esse ritmo.

O principal projeto conjunto se chama Força da Sibéria, um megagasoduto que tem 3.000 km em solo russo e 5.000 km em chinês. Ele já começou a operar e, quando estiver acabado em 2025, poderá fornecer o equivalente a 10% do consumo atual de gás natural da China.

Nesta sexta, o segundo ramo dele deverá ser anunciado, dobrando assim a capacidade. Tudo isso serve como uma espécie de seguro a longo prazo para Putin, que vê os EUA atacarem seus projetos energéticos para fornecer gás e petróleo à Europa como parte da disputa geopolítica com Moscou.

Tal posição garante a Moscou uma visão mais generosa por parte de atores europeus importantes, como a Alemanha, maior cliente de seu gás —que abastece 40% das necessidades do continente. Mas uma ruptura em torno da Ucrânia pode colocar isso a perder, e as alternativas a leste ganham peso.

A Rússia também planeja levar gás natural liquefeito por meio dos mares árticos dos campos de Iamal para portos chineses, tirando o peso estratégico das rotas do mar do Sul da China: todo gás que chega ao país por navio tem de passar pelo estreito de Málaca, facilmente congestionável por inimigos.

Em 2021, a China consumiu 331 bilhões de metros cúbicos de gás e deverá dobrar isso até 2035, dentro de seu plano de descarbonizar a economia totalmente até 2060. Já a Europa hoje consome 541 bilhões de metros cúbicos anualmente, sendo ainda o principal mercado russo.

Há complicadores na mudança de eixo. Existe em Moscou o temor de que o país se torne sócio minoritário na parceria com os chineses. O peso econômico e demográfico é incomparável, numa razão de dez para um em favor dos chineses. Se negócios com Pequim representam 18% das transações russas, o inverso só soma 2% da carteira chinesa.

Na abordagem política, Xi estende o tapete vermelho a Putin. Como seu chanceler, Wang Yi, disse ao colega russo Serguei Lavrov nesta quinta (3), os dois países vão coordenar todas suas posições —começando pela Ucrânia.

Xi elogiou a intervenção russa na crise cazaque de janeiro. Nos mares do Pacífico, ambos os países já operam juntos. Lá, os EUA buscam ampliar sua pressão com alianças como o Quad (com Japão, Austrália e Índia) e o Aukus (com Austrália e Reino Unido), reforçadas pelo desengajamento do Afeganistão.

Que esse cenário possa evoluir para hipóteses altamente agressivas, como conflitos simultâneos na Ucrânia e em Taiwan, esticando as capacidades americanas ao máximo, é algo só hipotético hoje.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.