Honrar nossos mortos em tempos de exceção
Última fronteira do adeus interrompido, o obituário semeia vida
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O mundo está de luto. Daí não passar despercebida entre nós a página dupla tomada por obituários do periódico L’Eco di Bergamo, da cidade vizinha à Milão, na Lombardia. Na localidade mais atingida pela pandemia na Itália, morre-se sozinho —os corpos são “enterrados todos juntos, sem ninguém para se despedir”, relata a jornalista Concita de Gregorio. Sem velório ou parentes, sem choro presente ou lágrimas. Sem qualquer cerimônia de adeus.
Dia após dia, então, o jornal cumpre o novo papel e as páginas se cobrem com histórias das vítimas da Covid-19. Fala-se de morte em todo lugar, mas é na vida cravada na tinta (e nas telas, de alcance universal) que o luto de Bergamo ecoa entre nós.
Quando a epidemia grassa, a supressão do cotidiano cria um hiato que amplifica a relação com a ideia da morte. A metáfora do xadrez que sempre perdemos traduz a antecipação do luto: inevitável, portanto, refletir sobre como honrar os mortos. Uma sociedade que se preze descobre, a despeito da impossibilidade, como realizar seus ritos, até dos anônimos: vide as cerimônias ao soldado desconhecido. Teremos um panteão dos médicos da Covid-19? A Europa, ciosa de sua memória, honrará seus novos mártires nas praças?
Vitais para o luto individual, os ritos alentam a comunidade machucada: tragédias coletivas são vividas de forma social. Mas, em tempos de peste, velórios e funerais já não existem como tais. A organização social esbarra na política de exceção: há restrições às liberdades individuais mais comezinhas e aos ritos públicos mais sagrados. Um impedimento que deixa feridas abertas. Mas há a narrativa de vida.
Última fronteira do adeus interrompido, o obituário semeia vida. Contar sobre quem se foi auxilia a despedida. Antes incumbência privada, agora é esforço coletivo. Diz Philippe Ariès, em “O homem diante da morte”, que o Ocidente migrou da inscrição na pedra para as tintas do jornal. Hoje, ganha o digital: os enlutados prestam homenagens nas redes, inclusive com obituários. E o rito ganha a dimensão pública vital à despedida dos mortos.
É porque o site do New York Times traz uma série de trajetórias únicas que deságuam na pandemia que conhecemos, como a do rabino Romi Cohn. Ainda garoto, ele salvou 56 judeus do nazismo. Morreu de Covid-19. Sua vida ganha caráter universal, devolvendo a dimensão humana aos números da tragédia. É parte do processo civilizatório. Que o Brasil siga os passos.
A pandemia não mostrou aqui toda a sua potência de morte. Se o fizer, precisaremos de espaço para significar nossas perdas —e não só no âmbito individual. Viver o luto público é parte da cura para a sociedade açoitada pelo flagelo. É pela memória, seu efeito de inscrição, portanto história, que avançaremos como civilização.
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