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Com decisão sobre prisão após 2ª instância, STF corrige próprio erro

Agenda de moralização da política encampada pelo Supremo se deu às custas do devido processo legal

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São Paulo

O Supremo Tribunal Federal (STF), por seis votos a cinco, decidiu que a lei, ao dispor que “ninguém poderá ser preso senão em decorrência de sentença penal condenatória transitada em julgado” não contraria o texto constitucional “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (quando não há mais possibilidade de recurso).

A questão jurídica, como uma simples leitura das normas pode depreender, sempre foi muito evidente ou “chapada”, como o tribunal gosta de chamar. A Constituição diz que a culpa só se firma após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória e a lei diz que ninguém poderá ser preso enquanto não for culpado.

Para além da evidente coerência textual entre lei e Constituição, o sistema processual penal como um todo trabalha com a noção de trânsito em julgado: é ali que fica determinada não só a pena, mas também o regime de seu cumprimento e uma eventual prescrição. Assim, executar antecipada e provisoriamente a pena poderia impor regime fechado a quem não devia ou, pior e gravíssimo, prender um inocente.

O presidente do STF, Dias Toffoli, durante julgamento na corte sobre prisão após segunda instância - Lúcio Távora/Xinhua

Mesmo juridicamente trivial —​e talvez em razão disso—, a questão em julgamento instou ministros vencidos a buscarem apoio em outras bandas. De forma geral, os argumentos mobilizados por eles trabalharam com a ideia de que prender apenas após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória seria um estímulo à impunidade, sobretudo para réus ricos.

Para embasar a posição, abundaram estudos e dados demonstrando que apenas réus ricos teriam acesso às cortes superiores, ainda que as sustentações orais promovidas pelas Defensorias Públicas de São Paulo e do Rio de Janeiro tenham enfrentado tal ponto. Levantamento feito pela Folha mostrou que, em verdade, as Defensorias Públicas chegam aos tribunais superiores e com mais sucesso que a advocacia privada.

Outra perspectiva usada pelos ministros vencidos se situou na crítica ao direito como ele está, uma posição por um lado mais sincera ao reconhecer a impossibilidade jurídica da prisão após segunda instância, mas por outro nefasta ao acreditar que seria possível ao tribunal desconsiderar normas garantidoras de direitos fundamentais em prol de um suposto e difuso interesse da sociedade. Maiorias contra direitos fundamentais? Nunca foi uma boa ideia.

Mas por que razão um caso juridicamente simples se tornou o julgamento mais sensível no Supremo nos últimos anos, dividindo o tribunal e engajando ministros de forma tão particular?

Em verdade, esse caso se tornou emblemático na agenda de moralização da política encampada pelo STF, que colocou o combate à corrupção no centro interpretativo do direito, ainda que a custo de desprezar o devido processo legal e as garantias processuais penais.

Afinal, foi na esteira da Operação Lava Jato que o Supremo decidiu alterar sua posição em 2016 e permitir a prisão após segunda instância, impactado com grandes empresários que se tornaram réus, com acesso ilimitado a recursos e que, por isso, nunca passariam sequer um dia na prisão.

O problema, assim, se resumiria em beneficiar os réus da Operação Lava Jato. Com o passar do tempo, esse caso se resumiu a beneficiar um réu em particular: o ex-presidente Lula. É verdade que esse caso se refere à interpretação da lei em tese, mas se tornou atrelado à manutenção da prisão ou soltura de Lula.

Uma breve cronologia ajuda a compreender a questão. Em 2016, o Supremo mudou sua interpretação e permitiu a prisão após condenação em segunda instância, dividido em seis a cinco em uma medida liminar.

Já no início de 2017, o ministro Gilmar Mendes anunciou sua mudança de posição, para aderir à tese contrária à execução provisória da pena, o que comporia uma nova maioria para o julgamento definitivo. Porém, desde então, o caso não mais foi a julgamento: Cármen Lúcia, à época presidente do Supremo, negou pautar o caso. 

Dias Toffoli assumiu a presidência do STF anunciando data de julgamento para o caso, mas precisou retirar de pauta. Ameaças veladas e explícitas, campanhas digitais e até tuítes de generais foram dirigidos ao Supremo com a mensagem inequívoca que soltar Lula seria o estopim para sabe-se lá o quê. Só agora, apenas dois anos após a sabida mudança de posição, o caso foi pautado, julgado e encerrado.

Os ministros vencedores ressaltaram a inexistência de conflito entre o que diz a lei e a Constituição: juridicamente, de fato, a questão foi simples. Dias Toffoli, o último a votar, foi veemente em afirmar que a redação da lei é clara e foi fruto de vontade do Parlamento, compartilhando com os legisladores a responsabilidade pela decisão. Para Toffoli, a lei como está se adequa à Constituição e outra, que eventualmente permita a prisão após segunda instância, também estaria.

O recado mais relevante dado pelos vencedores, entretanto, foi a afirmação que não pode haver oposição entre direitos fundamentais e repressão ao crime. Garantias processuais não se opõem ao combate ao crime, nem à eficiência do sistema de Justiça. Aliás, não deixa de parecer cínica essa preocupação com a eficiência da Justiça criminal diante de centenas de milhares de encarcerados que nem sequer tiveram qualquer condenação.

A eventual demora no julgamento de recursos não pode servir de justificativa para suprimir garantias processuais. Cabe ao Judiciário como um todo se tornar mais efetivo na prestação jurisdicional: juízes de primeira instância não devem assumir riscos que possam criar nulidades processuais, tribunais devem respeitar as súmulas e orientações de cortes superiores, que, por sua vez, devem ser céleres na resolução dos casos.

A decisão do Supremo corrige seu próprio erro, ainda que tardiamente.
 

Eloísa Machado de Almeida

Professora e coordenadora do Supremo em Pauta da FGV Direito SP

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