Descrição de chapéu Saiu no NP

1983: Protesto de desempregados em São Paulo deixa 1 morto e 566 detidos 

Manifestação iniciada na zona sul da capital durou mais de 70 horas

Luiz Carlos Ferreira
São Paulo

Foram três dias de saques, depredações, tiros, prisões e muito pânico em meio à manifestação organizada pelo Movimento Contra o Desemprego e a Carestia, iniciada às 8h da segunda-feira de 4 de abril de 1983, no largo Treze de Maio, em Santo Amaro (zona sul de São Paulo).

Na ocasião, cerca de 2.000 pessoas se concentraram em frente à Catedral de Santo Amaro para uma passeata pacífica contra a crise econômica e a alta do desemprego em São Paulo.

O Notícias Populares, jornal que sempre deu destaque a temas ligados à economia popular e à luta de classes, designou uma equipe de repórteres para registrar os desdobramentos do movimento —à época recém-formado por entidades sindicais e partidos de oposição, entre os quais o PT e o PC do B.

 

O ESTOPIM

Testemunhas relataram que por volta das 9h, quando já havia sido dada a partida para a passeata, policiais militares agiram de forma truculenta contra manifestantes, o que culminou numa onda de saques, arrastões e "quebra-quebra" que durou mais de 70 horas e se espalhou por vários pontos da capital.

Um dos promotores do movimento, José Lima Soares, que já havia antecipado à Polícia Militar o propósito do Movimento Contra o Desemprego e a Carestia, também responsabilizou a polícia pelos conflitos. "A PM rompeu o acordo, começou a prender e espancar o pessoal, e aí não teve jeito, virou uma coisa espontânea", disse Soares na ocasião.

A região de Santo Amaro, a mais afetada, transformou-se num verdadeiro campo de guerra entre policiais, manifestantes e comerciantes —que tiveram seus estabelecimentos invadidos e até destruídos por uma massa incontrolável de pessoas.

 
Os primeiros ataques ocorreram no supermercado Barateiro —um dos maiores e mais populares da região na época— e logo se estenderam para lojas, açougues e até um caminhão que transportava laranjas, que acabaram servindo de munição contra a polícia.
 
Com o seu contingente ainda pequeno até o início da tarde, a polícia não conseguiu conter a "fúria" dos populares. Em poucas horas, os próprios organizadores do movimento, que já tinham perdido totalmente o controle sobre a multidão, mobilizaram cerca de 300 desempregados e seguiram em direção à Assembleia Legislativa de São Paulo, no Ibirapuera.
 
Lá foram recebidos pelo deputado Vanderlei Macris (que fazia parte do PMDB) para expressarem suas reivindicações. Do encontro, no entanto, ficou apenas o compromisso de que o deputado e os participantes do movimento se reuniriam em poucos dias para discutir propostas para a redução do desemprego no estado.

Ao deixarem a Assembleia, líderes e manifestantes ocuparam à força quatro ônibus da CMTC (extinta Companhia Municipal de Transportes Coletivos de São Paulo), que os levaram de volta para a zona sul.

Supermercado do Jardim São Luis, na zona sul de São Paulo, é invadido por populares no primeiro dia dos protestos contra o desemprego
Supermercado do Jardim São Luis, na zona sul de São Paulo, é invadido por populares no primeiro dia dos protestos contra o desemprego - Jorge Araújo - 04.abr.1983/Folhapress

INVASÃO NA DELEGACIA

Por volta das 17h, um grupo de aproximadamente 100 pessoas tentou invadir o 11º Distrito Policial de Santo Amaro a fim de resgatar 70 companheiros que haviam sido detidos durante os conflitos. Porém um tiro disparado por um delegado de apelido Tarzã dispersou os manifestantes. Àquela altura, o bairro de Santo Amaro estava quase que inteiramente interditado.

 
Até o fim da tarde os ataques se alastraram também para outros bairros da zona sul, como os jardins Ângela, Ibirapuera, Monte Azul e Vaz de Lima, além de regiões do Campo Limpo e da Estrada de Itapecerica.

No Jardim São Luis, também na zona sul, cinco padarias e seis supermercados foram saqueados. Em um dos estabelecimentos, nem os tiros disparados pelos seguranças intimidaram os saqueadores.

O repórter fotográfico da Folha Nelson Amaral, além de ser agredido por populares, teve parte de seu equipamento de trabalho danificado. Uma viatura do DSV (Departamento de Operação do Sistema Viário), que estava em frente a um supermercado, foi tombada por saqueadores. A chegada de mais policiais nas regiões não foi suficiente para inibir a agitação.

Carro da Polícia é tombado por populares no Jardim Ibirapuera, na zona sul de São Paulo
Carro da Polícia é tombado por populares no Jardim Ibirapuera, na zona sul de São Paulo - Nelson Amaral - 04.abr.1983/Folhapress

FATO TRÁGICO

Já passava das 20h na rua João Fernandes Camisa Nova Jr, no Jardim São Luis, quando o corretor de imóveis Pedro Ignácio, de 63 anos, que não participava dos atos, foi atingido na cabeça por um tiro vindo de um Chevette marrom.

Segundo testemunhas, o veículo pertencia a um dos proprietários do mercado "Chacuí", um dos alvos dos saqueadores no momento em que o corretor foi alvejado. Levado às pressas para o Hospital do Morumbi, Pedro não resistiu ao ferimento e morreu no início da madrugada do dia 5.

Com os distúrbios amenizados no final do dia, o governador do Estado, Franco Montoro (que fazia parte do PMDB), anunciou, sem detalhes, uma ação emergencial para a geração de empregos e pediu a seus secretários medidas para evitar novas manifestações e embates na capital.

Na terça-feira, 5 de abril, um dia após os primeiros ataques, houve nova concentração no largo Treze de Maio, quando mais de mil desempregados se reuniram para uma caminhada até o Palácio dos Bandeirantes, onde tentariam uma audiência com o governador. Lá, os manifestantes chegaram a derrubar parte da grade de proteção da sede do governo, mas foram reprimidos com tiros para o alto e bombas de gás de efeito moral pela tropa de choque que estava de prontidão no palácio.

Os deputados José Genoino e Paulo Frateschi, ambos do PT, foram espancados quando tentavam proteger os manifestantes da polícia. Conforme o Notícias Populares relatou, dois secretários do governo, Marco Antonio Castello Branco (de Estado) e Almir Pazzianotto (das Relações de Trabalho), tentaram acalmar os ânimos dos manifestantes. Mais tarde, líderes do movimento foram recebidos pelo governador.

Corre-corre toma conta do segundo dia de protesto dos desempregados nas ruas de Santo Amaro, na zona sul de São Paulo
Corre-corre toma conta do segundo dia de protesto dos desempregados nas ruas de Santo Amaro, na zona sul de São Paulo - Gil Passarelli - 05.abr.1983/Folhapress

NOVOS ATAQUES

No início da tarde, novos ataques a comércios voltaram a ocorrer na zona sul. Horas depois, a violência se refletiu também nas regiões do centro da capital, começando pelo Parque D. Pedro 2º e se estendendo às principais ruas entre as "praças" do Patriarca, Sé, República e Largo São Bento. Com a chegada das tropas de choque e mais viaturas das polícias civil e federal, o "corre corre" foi ainda maior, e mais depredações e saques tomaram conta do centro.

No terceiro e último dia de protesto, o governo federal deixou o 2º Exército à disposição do Estado. Porém, com a redução dos conflitos, não houve necessidade da atuação do contingente. De Brasília, o ministro do Trabalho, Murilo Macedo, após reunião com o presidente da República, João Baptista Figueiredo, disse que os problemas ocorridos em São Paulo eram de responsabilidade do governo estadual, que já matinha planos contra o desemprego no estado.

Líderes dos protestos contra o desemprego se reúnem com secretários do governo do Estado no segundo dia de manifestação em São Paulo
Líderes dos protestos contra o desemprego se reúnem com secretários do governo do Estado no segundo dia de manifestação em São Paulo - Alvaro C. - 05.abr.1983/Folhapress

SALDO FINAL

O coronel João Pessoa do Nascimento, que era o titular do Comando de Policiamento da Capital (CPC), divulgou um balanço com os números das ocorrências desencadeadas pelos protestos, que foram de 48 estabelecimentos inteiramente saqueados, 7 viaturas policiais e 15 carros particulares depredados, 566 detenções, 3 policiais feridos, 127 atendimentos em hospitais e um óbito.

Na manhã do dia 9 de abril, cinco dias após o início dos conflitos, Franco Montoro fez um curto pronunciamento em rede nacional de rádio e TV, a fim de tranquilizar a população, e se prontificou a ouvir as reivindicações do movimento.

Para o deputado federal João Cunha, então representante do estado pelo PMDB, em depoimento publicado no Notícias Populares: "Esta violência é o resultado do quadro geral das injustiças sociais, irresponsabilidades, desmandos, corrupção impune e absoluto desprezo com que o regime vem tratando o destino de milhões de brasileiros".

O então governador de São Paulo, Franco Montoro se pronuncia no segundo dia dos protestos contra o desemprego em São Paulo
O então governador de São Paulo, Franco Montoro se pronuncia no segundo dia dos protestos contra o desemprego em São Paulo - Matuiti Mayezo - 05.abr.1983/Folhapress
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