"Pai, entra no foguete. Agora vamos para Gana, né? Gana é na África, pai? Pai, você já pensou que se o racismo fosse mesmo um crime ele não aconteceria tanto? Booooa, não tenho o Daniel Amartey. Agora, vamos para qual país, pai?"
Viajando com o álbum de figurinhas da Copa nas mãos, eu e biscoita, minha filha Elis, de sete anos, conseguimos arrumar várias lambanças do mundo e da humanidade. Aproveitamos também para conversar sobre a diversidade dos países e dos jogadores, aprendemos juntos sobre geografia, história e até falamos sobre futebol.
"Pai, e essa guerra que não acaba? A Rússia não tá na Copa, preferiu ficar jogando bomba a jogar bola. Não dá para ir lá, não. A Croácia é lá perto, mas dá para ir. Vamos colar o Borna Sosa. Entra no foguete, pai."
Kátia, a moça que ajuda com tudo em casa, diz que não cedeu à vontade dos filhos de terem o almanaque. "Caro demais, onde já se viu R$ 4 cada pacotinho?"
Aproveitamos para falar sobre a miséria no Brasil e de outros países latino-americanos. A educação, ao que me parece, continua devendo na aproximação dos desafios de desenvolvimento do continente e os elementos que nos unem.
"Tem pobre na Costa Rica, pai? Tô quase completando o time. Que língua falam lá, pai? Ahh, espanhol, por isso os nomes são parecidos? Olha esse, Orlando Galo. Só falta ter a Galinha Pintadinha também."
O álbum também abre uma enorme possibilidade para falarmos a respeito de questões de gênero. Os meninos do colégio não permitem que Elis jogue futebol com eles. Ela curte ser goleira, não joga bem, mas se incomoda demais em ser excluída da atividade.
"Pai, tinha de ter figurinhas do time das mulheres junto com os homens. Tem jogador gay, pai? Deve ter, lógico. Os meninos nem sabem que existe a seleção das mulheres e por isso eles me excluem. Elas tinham de ser mais vistas. Eu também não entendo porque não temos seleções mistas ainda."
Outro ponto que nos rendeu boas conversas foram umas tais de figurinhas "legends", que trazem as imagens de craques como o brasileiro Neymar, o argentino Messi, o português Cristiano Ronaldo e o francês Kylian Mbappé estampadas com requintes dourados.
"Pai, por que todo o mundo quer tirar uma legend para vender? Não é muito mais legal aproveitar a emoção de ter tido a sorte de conseguir uma coisa rara? Se eu conseguir uma vou é colar para lembrar pra sempre."
Temos ainda muitas viagens a fazer com nosso foguete mágico até que cheguemos ao início da competição, no Qatar que, por sinal, nos rendeu uma prosa sobre a língua portuguesa. Afinal, é Qatar ou Catar?
"O mais importante é dar Brasil, né, pai?"… É, minha filha, torçamos pelo Brasil.
Em tempo: Geane Silva de Brito, 19, a garota cadeirante morta na Bahia por um atirador de 14 anos que entrou no colégio onde ela estudava, simboliza a vulnerabilidade extrema da pessoa com deficiência no Brasil.
Somos "o alvo mais fácil" do preconceito velado, da exclusão em todas as formas, da negligência das ações públicas, da violência que não se nota e pouco se registra e, agora, também do olhar daquele que mata a esmo, que busca eco para suas fragilidades naqueles também vulneráveis.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.