Mesmo diante de todo tipo de privação ao qual era submetido na cadeia, quando foi preso pelo regime de Getúlio Vargas, em 1936, o escritor Graciliano Ramos não esqueceu de um detalhe do cotidiano de detento que lhe causava náuseas: o café doce que lhe era servido.
"Enjoativo, com saibo de formiga", escreveu o alagoano em uma das várias passagens em que reclama da bebida em suas "Memórias do Cárcere".
O mesmo café adoçado que enjoava Graciliano também causa repulsa em vários cafezeiros. Eles argumentam que o café bom não deve ser amargo e, portanto, não haveria necessidade de adoçar. Além disso, o açúcar mascara os sabores naturais do café.
Mas será que é de fato inconcebível adicionar um pouco de açúcar? Não é o que dizem alguns especialistas.
De fato, cafés especiais bem torrados têm uma doçura natural. Mas eles são caros e pouco acessíveis para a maioria das pessoas, e estima-se que cerca de 95% dos brasileiros consumam cafés tradicionais (que são os mais facilmente encontrados nos supermercados).
O barista (especialista no preparo de cafés) Boram Um, tricampeão brasileiro de barismo, explica que, em geral, esses cafés costumam ter uma torra exageradamente escura, o que leva a um amargor excessivo, motivo pelo qual as pessoas sentem a necessidade de adoçar o café.
Pesquisa feita pela Abic (Associação Brasileira da Indústria de Café) em 2021 mostra que a maioria da população de fato opta por adoçar o cafezinho no Brasil:
Como o brasileiro toma seu café?
- 39% puro com açúcar
- 34% puro sem açúcar
- 17% com leite e açúcar
- 10% com leite sem açúcar
Fonte: Pesquisa feita pela Abic com pessoas que se dizem apreciadoras de café. Ou seja, se considerarmos que há pessoas que bebem café mesmo sem gostar muito (para despertar ou socializar, por exemplo), o índice de quem adoça a bebida deve ser até maior.
Assim, a vedação ao café adoçado não seria um elitismo? Afinal, é muito mais fácil tomar um café especial sem açúcar do que aquele pó excessivamente torrado que repousou na prateleira do supermercado por meses.
Além disso, o café tem uma dívida para com o açúcar. Segundo o sociólogo Carlos Alberto Dória, autor de livros como "A Formação da Culinária Brasileira", o café deve sua massificação ao açúcar.
"O café, o chá e o chocolate entram na dieta a cavaleiro do açúcar. É o açúcar que introduz isso nos hábitos alimentares", explica.
Ainda conforme Dória, o consumo de açúcar no Brasil tem a ver com o barateamento do ingrediente e a consequente imposição por parte da indústria alimentícia, e não pelo fato de o país ter sido uma colônia açucareira, como alguns imaginam.
Ele cita como exemplo um livro sobre doçaria nacional do século 18 –depois, portanto, de séculos de cultura canavieira no Brasil. Neste livro, diz, há receitas com quantidades muito menores de açúcar do que as versões encontradas atualmente na internet.
"Então essa ideia de uma propensão do brasileiro comer mais açúcar porque aqui produzia-se açúcar é bobagem", diz.
MELHOR CAFETERIA DO MUNDO USA AÇÚCAR
Baristas ouvidos pelo Café na Prensa dizem que adoçar o café não deveria ser um tabu. Eles são unânimes em afirmar que, de fato, não há necessidade de colocar açúcar em bebidas de torras mais claras, que costumam ter um dulçor natural.
Mas também não acham que o consumidor que quer adoçar sua bebida deva ser julgado por isso, especialmente se o café tiver uma torra mais escura.
Além disso, caro leitor, por mais que você seja um grande entusiasta de café, responda-me sinceramente: você sempre bebeu café sem açúcar? Desde a primeira vez que experimentou a bebida? Provavelmente sua resposta será "não".
Até o norueguês Tim Wendelboe, um dos mais aclamados baristas do mundo, confessou ao Café na Prensa que começou tomando café com açúcar.
"É um gosto adquirido. A maioria das pessoas não gosta de café na primeira vez que experimenta. Adoçar é uma maneira de diminuir o amargor. Mas, eventualmente, se você começa a beber cafés muito bons, você deixa de acrescentar açúcar, pois não é necessário."
A barista Isabela Raposeiras, considerada uma referência no mercado de cafés especiais no Brasil, vai na mesma linha. Segundo ela, a pessoa que tentar migrar bruscamente do café adoçado para o sem açúcar vai estranhar muito.
Wendelboe diz inclusive que usa açúcar em algumas das bebidas que serve na sua conceituada cafeteria em Oslo. "Por exemplo, quando fazemos iced coffees, nós normalmente balanceamos a bebida com um pouco de açúcar, só um pouquinho, para realçar os sabores frutados".
Ele conclui: "Eu não me oponho a adicionar nada ao café. Se isso faz o sabor do café ficar fantástico, então faça-o. Mas, para mim, um café de alta qualidade sempre será mais interessante quando bebido puro, sem nada".
Ou seja, não precisa tomar um café enjoativo, com gosto de formiga, como dizia Graciliano. Mas a hora do cafezinho deve ser um momento de prazer, então a bebida não deve ter um amargor excessivo, desagradável. Como diz o ditado, "de amargo já basta a vida".
E você, toma seu café com ou sem açúcar?
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Você sabia que a Folha reuniu especialistas para provar cafés e escolher os melhores rótulos encontrados nos principais supermercados? Confira aqui o resultado e veja na galeria abaixo como ocorreu a degustação. Afinal, comprar café de qualidade é o primeiro passo para começar a tomá-lo sem açúcar.
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