Duas pessoas vão tirar cara ou coroa por telefone. Como garantir que ninguém vai trapacear? Uma opção é o jogador número 1 escrever sua aposta num papel, trancá-la num cofre e enviá-la ao jogador número 2, que então joga a moeda e só aí abre o cofre. Mas, neste cenário em que as duas partes não podem se comunicar por imagens ao vivo, nada garante que o segundo jogador não vá quebrar o cofre antes de lançar a moeda, falseando o resultado a seu favor.
O exemplo pode parecer distante de um caso de segurança digital, mas a analogia explica a pesquisa de Bárbara Amaral, professora de física da USP, e de seus colaboradores, Charles Tresser (IMPA) e Paulo Nussenzveig (USP), que acreditam ter a solução para um problema antigo: o comprometimento de bit. A cientista aposta que pode desenvolver um protocolo quântico de criptografia, ou seja, uma estratégia mais eficaz para manter protegidas as informações trocadas online.
A criptografia é o campo do conhecimento que investiga técnicas de comunicação que permitem apenas ao remetente e ao receptor o acesso a uma determinada mensagem, o que nos dá mais segurança para fazer uma chamada por Zoom ou uma transferência bancária pela internet. Isso é possível graças a diferentes protocolos que mantêm o sistema seguro. O comprometimento do bit, um desses protocolos criptográficos, é um ponto fraco que assombra há anos os pesquisadores da área.
"É como se essas estratégias de segurança digital fossem um quebra-cabeças composto de várias peças, sendo o comprometimento de bit uma pecinha fundamental", explica Amaral. Ou seja: em teoria, quem possuir um computador superpotente e conseguir quebrar aquele elo sensível poderá hackear vários protocolos atuais. "Nosso plano é resolver esse ponto fraco."
Apesar da confiança da pesquisadora, o desafio não é simples -existe até um consenso de que a questão é insolúvel. No final dos anos 1990, dois artigos na revista "Physical Review Letters", uma das mais prestigiadas da área, mostraram que, mesmo usando a física quântica, o comprometimento de bit é impossível de ser 100% contornado: no jogo de cara ou coroa por telefone, uma das duas partes sempre consegue trapacear. "Esses estudos trouxeram teoremas que encerraram o assunto e diminuíram o interesse da comunidade nessa questão", relembra Amaral.
Ainda que não haja dúvidas quanto aos estudos, a professora e sua equipe acreditam ser possível contornar algumas hipóteses apresentadas. "Estudando as provas dos teoremas, encontrei uma possível saída: queremos adicionar ao protocolo um sistema auxiliar que servirá para garantir que a parte que recebe o cofre siga as instruções corretamente", explica. "Entre os sistemas quânticos pode haver uma correlação mais forte que entre os sistemas clássicos, um fenômeno conhecido como emaranhamento quântico, e são essas correlações que podem nos ajudar."
Esse sistema auxiliar enviado à segunda parte deve estar correlacionado a outro sistema que a primeira mantém em seu poder. Caso o segundo jogador tente trapacear, ele irá destruir essas correlações entre os sistemas auxiliares de uma maneira que pode ser verificada pelo primeiro jogador.
Na analogia do jogo, seria como a primeira pessoa enviar dois cofres, um com o seu comprometimento e um com o sistema auxiliar adicional. A parte que recebe o cofre não sabe qual é qual. Caso ela tente quebrar os cofres, irá destruir a correlação entre o sistema auxiliar que foi enviado e o sistema que ficou com o primeiro jogador. "É um projeto ousado, considerando que toda uma comunidade trabalhou nisso por anos e não conseguiu fugir dessa impossibilidade. Mas se a gente conseguir resolver de forma mesmo que parcial, seria um avanço muito representativo", conta.
O grupo precisa provar que a teoria é viável na prática. Para 2022, o plano é desenvolver um protocolo que funcione em um cenário ideal e ter a análise do caso pronta e publicada. "Isso já vai provocar um boom na comunidade -ainda que achemos uma pequena falha na ideia, o resultado vai gerar uma discussão, inspirar pessoas a retomar o tema", diz Amaral. Se der certo, em cerca de três anos o grupo começará a implementação experimental nos laboratórios da USP. "É nos projetos de risco que está a ciência que precisamos fazer", ela conclui.
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Pedro Lira é jornalista e social media no Instituto Serrapilheira.
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