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O que pensam os jovens cientistas no Brasil?

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Galileus da pandemia

Os ditos negacionistas podem levar a ciência mais a sério do que nós

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Olavo Amaral

Poucas vezes a ciência foi tão invocada no debate público como na pandemia de Covid-19. Por toda parte, cientistas e leigos fazem apelos para que ela seja levada em conta nas decisões políticas. Em paralelo, a palavra "negacionista" nunca foi tão usada para denominar ativistas antivacinas, defensores de certos tratamentos e céticos de medidas de distanciamento social.

A narrativa parece consistente: tais grupos, afinal, tomaram posições contrárias às sustentadas por órgãos como a Organização Mundial da Saúde e a maior parte das sociedades médicas. E se "a ciência não tem dois lados", como foi defendido na CPI da Covid-19, a leitura óbvia é que eles não estão do lado da ciência. O que é uma narrativa confortável, até o dia em que você descobre que o militante antivacinas médio leu muito mais sobre vacinas do que você.

Arte ilustra três homens sentados sobre um "recorte" da metade do planeta Terra, ironizando o terraplanismo.
Ilustração: Lívia Serri Francoio - Instituto Serrapilheira

Não acredita? Pegue um sujeito como Walter Chesnut, um marqueteiro digital convertido em vacinólogo amador que alega fazer "sessenta horas de pesquisa por semana". Seu site de hipóteses sobre a Covid-19 está apinhado de fatos pescados de artigos científicos sobre relações do vírus com dezenas de processos biológicos e proteínas obscuras. Pode ser difícil atestar o equilíbrio mental de alguém que alega ser "um dos maiores gênios médicos de todos os tempos". Mas, claramente, seu problema não parece ser falta de ciência.

Da mesma forma, defensores públicos do tratamento precoce da Covid-19 no Brasil incluem cientistas como o virologista Paolo Zanotto e médicos como o infectologista Francisco Cardoso, que estão a par da literatura sobre o assunto e citam estudos científicos o tempo todo. É razoável pensar que suas opiniões possam estar enviesadas por suas posições políticas – que também ficam óbvias nas redes. Mas, novamente, a questão não é falta de ciência.

E se você acha que é tudo culpa do viés político, explique a existência de alguém como Filipe Rafaeli, tetracampeão brasileiro de acrobacia aérea e esquerdista com jeitão de Che Guevara, que desde o ano passado luta uma cruzada pessoal em defesa da hidroxicloroquina e outros tratamentos com textos articulados e cheios de referências, e que com certeza leu mais sobre o tema do que a maioria dos meus amigos cientistas.

Isto quer dizer que eles estão certos? Não necessariamente, de acordo com a maioria dos especialistas. Mas se eles trilharam o caminho oposto, não foi por falta de evidência científica à disposição; pelo contrário, as razões para a divergência talvez passem pelo excesso dela.

Mesmo as narrativas antivacinas mais absurdas fazem uso abundante de fatos científicos. Por vezes eles são apenas mitos travestidos de ciência, mas nem sempre: bastam seletividade e liberdade de interpretação para construir opiniões heterodoxas com base em dados reais. É o que tem sido chamado de alt-science: uma fronteira conturbada em que evidência controversa é regada por vieses e certa dose de teoria de conspiração para chegar a conclusões alternativas, em um processo resumido espirituosamente no "selo Osmar Terra de análise freestyle de dados".

O epidemiologista Doug Altman certa vez argumentou que "precisamos de menos ciência, ciência melhor e ciência feita pelas razões certas". Boa parte da pesquisa sobre Covid --ou sobre qualquer tema --não chega a alcançar essas metas. E com ciência demais, de má qualidade, e apontando para todos os lados, haverá sempre um artigo científico para confirmar a opinião que você já tinha.

O problema é particularmente crítico na pesquisa básica, em que experimentos em células ou roedores, cuja reprodutibilidade já é limitada, costumam ter sua relevância médica exagerada. Com a profusão de hipóteses geradas em tubos de ensaio, podem-se levantar incontáveis argumentos que sugerem que o medicamento X funcione na doença Y, mesmo que sejam pequenas as chances de que algo de fato vá chegar à prática clínica.

Mas o problema não se limita à pesquisa básica. Inúmeras metanálises mostram benefícios da ivermectina no tratamento de pacientes com Covid-19 --por mais que boa parte delas alerte sobre a baixa qualidade da evidência. Depois de um trabalho incomum de escrutínio de dados que detectou uma série de prováveis fraudes (e que jamais teria sido feito não fosse a polarização do assunto), o agregado dos ensaios clínicos começa a sugerir que o efeito da droga, se existe, é pequeno; ainda assim, o debate parece longe de estar encerrado.

Mesmo antes disso, porém, as recomendações oficiais já haviam desconfiado da evidência positiva --e talvez tenham tido razão. A heurística, porém, nem sempre é fácil de explicar, e envolve uma avaliação de qualidade de evidência que dificilmente é acessível a um leigo.

A ideia de que acreditar na ciência é confiar nos experts não é necessariamente popular, já que vai contra ideais caros à própria ciência. Em contrapartida, ler dúzias de artigos e desafiar o conhecimento estabelecido vai de encontro ao arquétipo romantizado do cientista -- e não é a toa que donos de opiniões minoritárias sobre vacinas ou tratamento precoce adoram se dizer na companhia de Galileu. O argumento, é claro, ignora que para cada Galileu verdadeiro existem milhares de malucos provando que a Terra é plana. Mas, na incapacidade da ciência acadêmica de aumentar o sarrafo da evidência publicada, pode ser difícil distinguir entre uma coisa e outra.

Com isso, talvez seja hora de deixar claro que o que boa parte dos ditos negacionistas negam é o consenso, e não o processo científico em si. Isso, porém, implica admitir que acreditar na ciência envolve confiar no coletivo, e que mitos fundadores de indivíduos desafiando dogmas são a exceção e não a regra. Mais do que isso, nos obriga a aceitar que, na maior parte dos assuntos, não entendemos mais a fundo a ciência do que os que discordam de nós --simplesmente optamos por delegar nossa opinião a quem tem mais capacidade de julgá-la.

Tornar isso explícito ajuda a enxergar que descontar toda voz dissonante como negacionista joga no mesmo balde conspiracionistas delirantes e opiniões razoáveis, ainda que minoritárias: nem todos os consensos, afinal, são consensuais na mesma medida. Existe um universo entre o grau de certeza de "a Terra é redonda" e o de "ivermectina não deve ser usada na Covid-19", com incontáveis tons de cinza entre uma coisa e outra.

E é sempre bom lembrar que confiar no consenso não nos isenta de riscos: em alguns aspectos da pandemia de Covid-19, como a transmissão do vírus por aerossóis, a demora em reconsiderar ideias estabelecidas levou a equívocos trágicos por parte das autoridades sanitárias. Mas para quem tem a humildade de reconhecer que não somos capazes de entender a fundo da imensa maioria dos assuntos, acreditar nos especialistas ainda costuma ser uma estratégia razoável para acertar mais do que errar.

Sem esses reparos, o rótulo de "negacionista" corre o risco de estigmatizar gente curiosa, que chega a suas conclusões ao fazer uso, mesmo que de forma canhestra --e por vezes trágica --da evidência científica. Ele não só aniquila o diálogo, mas alimenta ativamente as narrativas de conspiração. Para quem leu uma dúzia de estudos científicos dizendo que ivermectina funciona contra o SARS-Cov2, a indicação de não usar "porque a OMS não recomenda" só reforça o ideal de que o establishment científico está a serviço da conspiração globalista.

Com isso, cabe economizar no uso de um rótulo que já virou motivo de chacota entre quem o recebe. Como ocorre com "fascista", se todo indivíduo que desafia o consenso for tachado de "negacionista", teremos desperdiçado uma palavra importante. E quando precisarmos dela para descrever quem de fato não dá a mínima para a ciência --como é o caso de muita gente atualmente no poder --vamos descobrir que ela infelizmente já não quer dizer mais nada.

*

Olavo Amaral é professor do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis da UFRJ e coordenador da Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade.

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