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Descrição de chapéu genética

Diferenças genéticas afetam como o coronavírus se liga às nossas células

Como as variantes se adaptaram a essas diferenças?

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Luiz Eduardo Del-Bem

Ao longo dos dois últimos anos, duas forças evolutivas provocaram o surgimento de variantes do vírus causador da Covid-19: a mutação e a seleção natural. A primeira produz variabilidade genética espontaneamente durante a replicação do material genético do vírus, e a segunda seleciona, dentro deste universo, mutações que aumentam sua capacidade de reprodução e transmissão.

Mutações também produzem variação genética em humanos. Projetos que sequenciaram o genoma de milhares de pessoas revelaram a existência de variações que podem afetar a sequência de aminoácidos das nossas proteínas, essas máquinas moleculares que governam boa parte das funções de nossas células. Há uma proteína chamada ACE2 (ou Enzima Conversora de Angiotensina 2), que é justamente a porta de entrada do SARS-CoV-2 em nosso organismo. O vírus utiliza sua proteína S (Spike) como uma chave que se liga à fechadura ACE2, abrindo uma porta que dá acesso ao interior de nossas células, onde ele encontra os recursos necessários para sua reprodução. A doença surge como consequência desta invasão.

Arte ilustra um brinquedo educativo com quatro portas que têm encaixes diferentes de fechadura. Uma delas é tem o formato do coronavírus. Uma mão segura um molho de chaves e tenta encaixar uma das chaves na fechadura do coronavírus.
Ilustração: Julia Jabur - Instituto Serrapilheira

Mas parece que nem sempre é assim. Nosso grupo de pesquisa analisou o genoma de alguns milhares de pessoas e conseguiu identificar pelo menos uma dúzia de versões levemente diferentes da proteína ACE2. Assim como as variantes do SARS-CoV-2 possuem chaves S levemente diferentes, nossa espécie também apresenta variações na fechadura ACE2. Será que essas pequenas mudanças na fechadura humana poderiam afetar o funcionamento da chave do coronavírus? Para investigar tal hipótese e entender como cada átomo se encaixa neste jogo de chave e fechadura, recorremos a supercomputadores e à biologia estrutural.

Mesmo supercomputadores precisam de muitos dias para simular a interação entre um par de proteínas. Depois de alguns meses de cálculos e mais cálculos, que também levaram em conta as diferenças na proteína S das variantes do SARS-CoV-2, ficou claro que ao longo da pandemia o vírus desenvolveu chaves melhores para abrir nossas células. Todas as variantes que testamos eram mais eficientes em se ligar à proteína ACE2 do que o vírus original identificado em Wuhan na China.

Como o SARS-CoV-2 pertence a uma linhagem de vírus de morcegos, seria esperado que, ao saltar para humanos, ele evoluísse por seleção natural de forma a interagir de maneira cada vez mais eficaz com nossas células, aumentando sua transmissibilidade. Entretanto, nos chamou a atenção que algumas raras pessoas possuíam versões da proteína ACE2 que atrapalhavam a ligação do vírus: era como se ele tivesse mais dificuldade para abrir a porta das células de alguns indivíduos.

Algumas variantes evoluíram proteínas S generalistas, que conseguem se ligar bem a praticamente qualquer versão de ACE2, como é o caso da Alfa (identificada no Reino Unido) e da Gama, que assolou o Brasil, sobretudo Manaus. Outras, no entanto, como a Beta (identificada na África do Sul), parecem ser mais especialistas em se ligar à versão mais comum de ACE2, aquela presente na grande maioria das pessoas.

Os resultados mostraram que as variações genéticas na proteína ACE2 também são importantes para entender como o vírus se liga às nossas células e se transmite para outras pessoas. Para nosso azar, as versões de ACE2 que atrapalham a ligação do vírus parecem ser raras, ocorrendo em bem menos de 1% das pessoas. A maior parte de nós possui uma versão da proteína ACE2 para a qual as variantes do SARS-CoV-2 desenvolveram uma ligação muito eficiente, o que ajuda a explicar como este coronavírus produziu uma pandemia.

Nosso trabalho mostra como a medicina do futuro poderá realizar diagnósticos com precisão molecular e chegar a prognósticos individualizados, que levem em conta a diversidade genética humana. Ao contrário de tratamentos genéricos, em algumas décadas teremos recursos terapêuticos únicos e personalizados, impulsionados pela revolução genômica e o desenvolvimento de supercomputadores cada vez mais poderosos.

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Luiz Eduardo Del-Bem é geneticista e professor do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG.

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