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A corrida para criar um observatório da saúde do planeta

Cientistas desenham plano ambicioso para monitorar todas as espécies do mundo

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Sofia Moutinho

Da comida que comemos ao ar que respiramos, nossas necessidades básicas são providas pela incrível variedade de animais, plantas, fungos, bactérias e protozoários. Mas essa biodiversidade está ameaçada: estamos à beira de uma sexta extinção em massa. Espécies estão desaparecendo a uma taxa mil vezes maior que nunca antes na história do planeta – mais veloz que a causada pelo meteoro que dizimou os dinossauros há 66 milhões de anos. E a culpa é de uma espécie: o Homo sapiens, que vem destruindo habitats, poluindo a atmosfera e causando um aquecimento global.

A proximidade da fase final de negociações de um novo acordo da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), a ser apresentado na Conferência sobre Biodiversidade da ONU (COP15) em dezembro, no Canadá, dá um empurrão extra na comunidade científica para frear esse cenário.

Arte ilustra diversos insetos dispostos sobre um fundo verde
Ilustração: Valentina Fraiz - Instituto Serrapilheira

O rascunho do novo acordo, chamado Marco Global para a Biodiversidade Pós-2020, é ambicioso e prevê alvos como diminuir a taxa de extinção de espécies em dez vezes, aumentar em 5% a área de ecossistemas preservados, e conservar até 90% da diversidade genética de todas as espécies, até 2050. Mas a verdade é que a maior parte dos países, incluindo o Brasil, não tem sistemas oficiais de monitoramento da biodiversidade para guiar e acompanhar essas metas.

"Esperamos obter metas ambiciosas, mas na realidade não podemos estimar com segurança nosso progresso", diz Andrew Gonzalez, biólogo da Universidade McGill, no Canadá, e copresidente da Rede Global de Observação de Biodiversidade (Geobon), uma instituição sem fins lucrativos parceira da CDB.

Nas últimas duas décadas, Gonzalez e outros cientistas ligados à Geobon têm criado redes regionais de monitoramento de biodiversidade em diferentes biomas e ecossistemas do planeta. Para coletar esses dados, são usadas diferentes abordagens, desde trabalhos de campo até análise de imagens de satélite e, mais recentemente, a revolucionária tecnologia de DNA ambiental, que identifica com precisão traços genéticos de todas as espécies em uma amostra.

Mas essas redes de monitoramento ainda são escassas e fragmentadas. Não existe hoje nenhum esforço global e integrado para monitorar a biodiversidade do planeta. Agora, Gonzalez e cerca de outros 50 cientistas pretendem mudar esse cenário. O grupo se reuniu a portas fechadas no Fórum Mundial de Biodiversidade, mês passado, na Suíça, a fim de estabelecer um plano para criar um sistema global de monitoramento da biodiversidade.

"Temos assistido a uma revolução na tecnologia e em como estudamos e medimos a natureza, mas o mundo ainda não está organizado para trabalhar junto e montar uma rede global que nos permita estudar a biodiversidade em qualquer país", diz Gonzalez.

O desafio é grande: cientistas estimam que existam mais de 8,7 milhões de espécies na Terra. E monitorar a biodiversidade não se restringe a contar espécies, mas acompanhar outros fatores como a diversidade genética, as funções ecológicas e a dispersão dos organismos.

"Parece muito utópico, mas ou a gente faz isso ou vamos pro brejo", diz a bióloga brasileira Ana Carnaval, da Universidade da Cidade de Nova York (CUNY), nos EUA. "Já estamos procedendo assim com o clima, mas temos que fazer para todas as espécies. Precisamos de um observatório mundial para gerar relatórios da saúde do planeta e saber o que já estamos perdendo, qual vai ser a trajetória e como mudar esse cenário terrível."

O grupo pretende apresentar um plano inicial na COP 15 para convencer os tomadores de decisão e a iniciativa privada da importância de financiar o ambicioso projeto. Os cientistas explicam que começariam integrando os dados e redes de monitoramento já existentes para então fomentar a criação de novas redes. O sistema global seria tanto uma grande rede de iniciativas de monitoramento pelo mundo, quanto um repositório online onde dados gerados e modelos para prever mudanças de biodiversidade estariam disponíveis gratuitamente.

A ferramenta ajudaria a responder perguntas como o número de espécies em uma dada região, sua diversidade genética e sua eventual adaptação às mudanças climáticas. Um sistema global também traria insights para questões que ainda são uma incógnita, como determinar quais são os tipping points ou pontos sem retorno, quando a perda de determinadas espécies leva ao colapso ecológico.

"Esses tipping points ocorrem de maneira abrupta e para prevê-los precisamos ser capazes de detectar os primeiros sinais de perigo, o que só pode ser feito com monitoramento constante", explica Gonzalez. "Hoje, na maioria dos casos, só nos damos conta desses pontos quando já é tarde demais e não tem mais como reverter."

A ideia é que além de providenciar dados para guiar políticas de conservação, a ferramenta possa servir de modelo a países que ainda não dispõem de tais sistemas. "Iríamos prover os países com um framework [estrutura básica] do que eles precisam monitorar para entender o impacto das políticas de conservação na biodiversidade", diz a ecóloga Cornelia Krug, uma das líderes do projeto, da Universidade de Zurique, na Suíça.

Mas desafios não faltam, começando pela própria disponibilidade e disparidade dos dados sobre biodiversidade. Embora existam mais de 2 bilhões de dados em um dos repositórios mais usados hoje, o Global Biodiversity Information (GBIF), 80% deles são relativos a apenas 10 países, incluindo Estados Unidos e nações europeias – que não estão entre os mais ricos em biodiversidade. Mesmo os dados sobre a biodiversidade do Brasil, por exemplo, são em sua maioria gerados por iniciativas estrangeiras.

Países mais pobres vão precisar de mais investimentos para começar a montar suas estruturas de monitoramento. "Seria superbacana se tivéssemos todo o dinheiro do mundo para monitorar todos os biomas brasileiros, por exemplo", diz Carnaval. "Isso está muito longe de ser uma realidade, mas é um objetivo grande dessa comunidade de ciências da biodiversidade."

A própria cultura de pesquisa é outro desafio, já que muitos cientistas não estão acostumados a compartilhar seus dados. Frequentemente, dados de pesquisa são reservados para publicação de artigos em periódicos com assinatura paga e restrita. Mas Gonzalez acredita que já esteja havendo uma mudança de cultura no sentido de compartilhar mais. "É uma questão de engajamento e confiança", ele diz.

Outro problema é chegar a um consenso sobre os indicadores e medidas que devem ser empregados para o monitoramento. Enquanto os cientistas do clima estão bem na frente nesse quesito, e usam indicadores em comum para medir o avanço do aquecimento global e modelos que falam a mesma língua em todos os países, o pessoal da biodiversidade ainda está tentando se entender.

"Ainda estamos brigando sobre quais são as variáveis que têm que estar lá", conta Carnaval. "Tem coisas que já são convenção e outras que ainda estão sendo discutidas. Vamos chegar na COP15 com um esboço muito cru, mas é uma visão para o futuro."

O biólogo Mark Urban, da Universidade de Connecticut, nos EUA, que não está diretamente envolvido no projeto, diz que um esforço global como este é "uma das melhores coisas que poderíamos fazer para facilitar a proteção da biodiversidade". Por anos, Urban tem pleiteado uma plataforma global para compartilhar modelos de previsão de biodiversidade. "Sem previsão é muito difícil criar estratégias de conservação eficazes", ele diz. "Porque acabamos perdendo dinheiro em espécies que estão bem e deixando de lado aquelas que realmente estão em risco."

Ainda não há estimativa dos custos para montar esse sistema global de monitoramento, que deve ser na casa de centenas de milhares de dólares. Mas os cientistas estão otimistas. "Pela primeira vez, temos um interesse duplo de governos e da iniciativa privada em conservar a biodiversidade", diz Gonzalez. Segundo ele, se o plano for aceito na COP15 e houver financiamento, o grupo poderia ter um piloto pronto para uso em 2030. "O momento é agora."

*

Sofia Moutinho é jornalista. Este texto foi produzido com uma bolsa de viagem da Internews' Earth Journalism Network's Biodiversity Media Initiative para o Fórum Mundial de Biodiversidade em Davos, Suíça.

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