Ciência Fundamental

O que pensam os jovens cientistas no Brasil?

Ciência Fundamental - Ciência Fundamental
Ciência Fundamental

Uma ciência narcísica não fará um país melhor

Conhecimento que busca referências apenas em seus espelhos abre mão do que a maioria da população tem a oferecer

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Thales Vieira Carol Canegal

Em maio de 2022, o Observatório da Branquitude fez um levantamento dos 302 reitores/as de instituições públicas de ensino superior do Brasil e o resultado mostrou que 294 deles/as são brancos/as. Salta aos olhos a sobrerrepresentação no cargo: os brancos, embora constituam apenas 43% da população, ocupam praticamente a totalidade das reitorias.

Os estudos críticos de branquitude, em franca expansão, vêm demonstrando que o racismo como um sistema complexo de dominação não só penaliza suas vítimas, mas confere a quem o engendra o monopólio das estruturas políticas, jurídicas e econômicas tanto do imaginário social quanto dos códigos de comportamento que regem as relações sociais. Portanto, oferece privilégios simbólicos e materiais aos brancos, sobretudo em um país tão desigual como o Brasil.

Arte ilustra dois perfis femininos em posição horizontal, um virado para cada lado; ao fundo, há uma Lua
Ilustração: Clarice Wenzel - Instituto Serrapilheira

O racismo não se esconde em áreas nem se limita a momentos específicos: permeia toda a sociedade e cria tecnologias de exclusão da raça subalternizada, que fica em permanente e concreta inferioridade em todos os indicadores socioeconômicos. Em sua outra face, ele oferece à raça dominante uma superioridade real, efetiva e visível na integralidade da vida social. Assim, o racismo preserva e amplia as benesses e o poder político dos grupos em posição de supremacia, transferidos de geração a geração.

A ciência não está de fora desse jogo.

Na produção de conhecimento, missão das instituições de ensino superior, há uma histórica hierarquia de saberes. Os de origem eurocêntrica têm um lugar epistemológico mais alto (epistemologia, vale dizer, é a ciência da aquisição de conhecimentos) e são considerados a ciência verdadeira. Por outro lado, os saberes de origem africana, afrodiaspórica e indígena são relegados à invisibilidade ou a posto de menor importância nas proposições de soluções para a coletividade.

Em momento de negacionismo científico aflorado, atingindo níveis letais durante a pandemia de Covid-19, a ciência tem a forçosa oportunidade de se olhar e refletir sobre os saberes que estão ficando para trás e que poderiam compor o leque de saídas para um país tão fraturado socialmente. Uma ciência narcísica, isto é, que busca apenas referências em seus próprios espelhos e nunca se cansa de se apaixonar por si, é uma ciência que faz a opção deliberada pela mediocridade, pois abre mão da contribuição de mais da metade da população, e por isso se acanha. Fica patinando sobre si mesma.

É necessário, pois, combater as epistemologias únicas para que a ciência não persista numa visão monocromática, monocular e única. Trazer o debate epistemológico para a compreensão do papel da ciência no Brasil significa aprofundar a discussão e perguntar qual ciência efetivamente contribui para a construção do Brasil do amanhã.

A escritora, psicóloga e artista Grada Kilomba afirma que as concepções epistemológicas vão definir os temas ou tópicos que merecem atenção, e determinar as questões dignas de serem levantadas com o intuito de produzir conhecimento verdadeiro. Em outros termos: que narrativas e interpretações podem ser mobilizadas para explicar um fenômeno? Quais métodos, maneiras e formatos podem ser aplicados para a produção de conhecimento dito confiável?

Temas, métodos e paradigmas, por conseguinte, constituem o cenário daquilo que legitima o conhecimento, e é com base nessa tríade que a ciência eurocêntrica tem sistematicamente excluído do corpo científico oficial os saberes de origem africana, afrodiaspórica e indígena.

O racismo, em sua dimensão estrutural, constrói esse saber soberano que, por sua vez, traz consequências práticas e reais na vida das pessoas e nas esferas de poder em que se assentam as instituições científicas no Brasil e no mundo.

Examinar as epistemologias únicas da branquitude como objeto de escrutínio e abrir espaço para novos corpos e ideias na construção da ciência pode ser a tábua de salvação para um saber científico cada vez mais desacreditado. Uma universidade plural será ainda mais capaz de oferecer soluções efetivas para uma sociedade igualmente plural, múltipla e abundante.

*

Thales Vieira é fundador do Observatório da Branquitude, e Carol Canegal é coordenadora de pesquisa na mesma instituição. No início de 2023, o observatório vai lançar, em parceria com o Alma Preta, o projeto audiovisual "Nenhum saber para trás", que vai refletir sobre quais epistemologias construirão a ciência do Brasil no amanhã.

Inscreva-se na newsletter do Instituto Serrapilheira para acompanhar mais novidades do instituto e do blog Ciência Fundamental.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.