Ciência Fundamental

O que pensam os jovens cientistas no Brasil?

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Descrição de chapéu universidade alimentação

O que alimentos ultraprocessados e cigarros têm em comum?

Para a ciência, semelhanças vão do impacto na saúde à morosidade das políticas públicas

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Murilo Bomfim

Quem segue a cozinheira e apresentadora Rita Lobo nas redes sociais deve ter ficado no mínimo curioso com uma informação compartilhada em um post recente: o tomate e a berinjela, assim como o tabaco, contêm nicotina. Mas, é claro, diferentemente do que ocorre com o cigarro, não vemos pessoas consumindo 20 tomates por dia ou loucas por uma berinjelinha toda vez que tomam um café ou uma cerveja.

Isso porque, como Rita explica no vídeo, a quantidade de nicotina presente na folha de tabaco é superior às quantidades encontradas no tomate e na berinjela. Essa, no entanto, não é a única diferença. A cozinheira cita uma entrevista da psicóloga americana Ashley Gearhardt, da Universidade de Michigan, para explicar que a indústria do tabaco processa as folhas da planta com o intuito de aumentar significativamente a concentração de nicotina no cigarro. Além disso, inclui aditivos como broncodilatadores, que fazem a fumaça entrar no pulmão mais rápido, favorecendo mecanismos que levam ao vício.

arte ilustra uma silhueta humana na qual estão inseridas alimentos e mãos fazendo um preparo de uma comida
Ilustração: Clarice Wenzel - Instituto Serrapilheira

A comparação entre cigarro e comida é importante no trabalho de Gearhardt. Em seu doutorado em psicologia clínica na Universidade de Yale, ela desenvolveu uma escala para medir comportamentos alimentares viciantes. O instrumento lista afirmações como "Sigo consumindo determinados alimentos mesmo que eu não esteja mais com fome", seguidas de opções de frequência (de "nunca" a "quatro vezes ou mais ao dia").

Em um de seus estudos mais citados, ela conclui que alimentos com alto grau de processamento parecem estar particularmente associados à adicção alimentar — inclusive tendo características em comum com o abuso de drogas, como o consumo em grandes quantidades e a rápida absorção de substâncias. Começam aí as semelhanças entre cigarro e alimentos. Trata-se de um paralelo que não vale para qualquer alimento, mas para os ultraprocessados.

Você certamente já ouviu falar de ultraprocessados. São formulações industriais que até parecem comida, mas não contêm nada (ou quase nada) de alimento de verdade e aditivos de sobra. O que você talvez não saiba é que o termo é fruto da ciência brasileira. Surgiu em 2009, quando o epidemiologista Carlos Monteiro, coordenador do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), percebeu que o aumento da prevalência de doenças crônicas (como diabetes e hipertensão) coincidia com a escalada de consumo de alimentos prontos (salgadinhos de pacote, bolachas recheadas, lasanhas congeladas).

À época, sua hipótese era que o ultraprocessamento de alimentos traria malefícios à saúde. Hoje, a ideia já não é mais uma hipótese: há pouco mais de dez anos, a associação vem sendo confirmada por pesquisadores no mundo todo e, nesse período, extrapolou o cercado da ciência e passou a impactar políticas públicas.

Um dos movimentos mais recentes ocorre no Reino Unido — um dos campeões do consumo de ultraprocessados, que respondem por cerca de 56% das calorias ingeridas pela população. Em junho, o político William Hague, conhecido por ter sido líder do Partido Conservador Britânico, publicou no diário The Times um artigo que destaca outra semelhança entre ultraprocessados e tabaco: a morosidade nas políticas públicas. "Como as pessoas não percebiam que inalar fumaça com nicotina em quantidade viciante não era uma boa ideia?", questiona, incrédulo com a resistência de parlamentares sobre o tema em discussões registradas nos anos 1950 e 1960.

Hague estranha que, mesmo com tantas evidências científicas da associação do tabaco ao câncer de pulmão e a doenças cardiovasculares, o Reino Unido tenha demorado tanto para pôr em prática ações de combate ao fumo. E destaca que as gerações futuras vão olhar para trás e encarar, com o mesmo espanto, a displicência em relação aos alimentos ultraprocessados.

Para Monteiro, do Nupens/USP, as evidências atuais são mais que suficientes para justificar ações de desestímulo do consumo desses alimentos. "A ciência ainda não esclareceu todos os mecanismos pelos quais os ultraprocessados afetam a saúde, mas não foi preciso saber o efeito de todos os componentes do cigarro para coibir o fumo", diz. "Está claro que esses alimentos estão associados a diversos desfechos negativos de saúde, como obesidade, diabetes, infarto do miocárdio e até mesmo depressão."

No Brasil, alguns avanços mostram impactos da ciência, como a recente proibição da oferta e venda de ultraprocessados nas cantinas escolares do Rio. Na reforma tributária, no entanto, a taxação de ultraprocessados ficou fora da discussão — ao menos por ora. Quem sabe o pioneirismo científico brasileiro na área ganhe reflexo nas políticas públicas.

*

Murilo Bomfim é jornalista e gerente de comunicação do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP).

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.

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