Ciência Fundamental

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Descrição de chapéu alimentação

O que é a fome oculta e como a biofortificação pode ajudar

O que a ciência diz sobre plantar alimentos com mais nutrientes para suprir deficiências

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Felipe Ricachenevsky

A fome nem sempre é aparente. Um dos problemas mais sérios da humanidade pode ocorrer por falta de determinados nutrientes na dieta. É a fome oculta.

Nós somos animais onívoros. Nossa dieta é adaptada ao estilo de vida de caçadores-coletores: até pouco tempo atrás, consistia em frutas, raízes e grãos nativos das regiões em que vivíamos, alimentos colhidos perto dos acampamentos sazonais e associados a carnes de animais que conseguíamos caçar, em geral pequenos.

arte ilustra um homem de chapéu cortando com garfo e faca um vegetal que se assemelha a uma batata e a uma cenoura
Ilustração: Julia Jabur - Instituto Serrapilheira

Com a vida nômade, as frutas e os animais da dieta variavam segundo o local, a época do ano, mudanças climáticas repentinas, doenças. Conhecíamos as espécies comestíveis, e quando uma faltava, havia sempre outras opções. Como não nos concentrávamos em poucas espécies, nosso extenso conhecimento de animais e plantas regionais nos permitia substituir alimentos escassos. A dieta era austera por imposição e diversa por obrigação.

Da mesma forma que muitos animais, evoluímos para identificar com mais facilidade os nutrientes de que necessitamos em abundância: proteínas, gorduras e açúcares. Já que as fontes, e quantidades, variavam conforme a estação, o lugar e, por que não?, a sorte de se deparar com uma árvore carregada de frutas, nós nos tornamos excelentes em reconhecer, e comer o quanto podíamos, frutas doces e carnes gordas. Vitaminas e minerais, necessários em menores quantidades, mas igualmente essenciais, eram obtidos sem que precisássemos buscá-los ativamente.

Enquanto alimentos gordurosos e doces até hoje enviam para o cérebro a mensagem "coma mais disso", não foi necessário adaptar um mecanismo similar – ao menos não tão compulsivo – para reconhecer e ingerir quantidades grandes de vitamina A, ferro ou cálcio. Eles entravam – e entram – de carona.

O surgimento da agricultura e a domesticação de espécies vegetais, entre 15 mil e 10 mil anos atrás, mudou esse cenário. A dieta dos caçadores-coletores, ainda que nutritiva, só era capaz de sustentar grupos pequenos. Ao domesticar milho, trigo e arroz, aumentamos drasticamente nossa capacidade de produzir alimentos, e agora as lavouras podiam dar conta de uma população cada vez maior.

Espécies nativas tendem a ser menos produtivas – frutas enormes, grãos cheios de amido são produtos das modificações que fizemos ao longo de séculos na maioria das espécies que consumimos. A agricultura deixou a dieta mais monótona, pois os agricultores gradativamente diminuíram a variedade de plantas que consumiam, se concentrando nas que podiam cultivar. Agora, mais numerosos que os caçadores-coletores – mais comida, mais filhos –, os indivíduos passaram a ter uma alimentação pior: nutrientes caroneiros tornaram-se raros. Mesmo sem fome, não estávamos tão bem nutridos. E é a realidade de muitas populações ainda hoje.

Países subdesenvolvidos e populações de menor renda tendem a ter acesso a esses mesmos grãos, bons para "encher a barriga", mas pobres em minerais e vitaminas. Resultado: deficiências nutricionais são comuns, mesmo que a fome – ainda um problema global, sem dúvida – não seja sentida. É a fome oculta.

Uma das soluções já adotadas foi a fortificação de alimentos. Ela requer a adição de nutrientes àquilo que consumimos. Você deve ter usado sal iodado hoje – o iodo é necessário para sintetizar hormônios da tireoide, que controlam o metabolismo. O pão de seu café da manhã foi feito com farinha de trigo ou milho fortificado com ácido fólico – importante para formação do sistema nervoso do embrião, e por isso um suplemento oferecido a mulheres grávidas –, e ferro – nutriente mineral necessário para transportar oxigênio pelo sangue e gerar energia em nossas células. Mas a fortificação de alimentos é cara, não sustentável a longo prazo, e não chega onde a fome oculta é mais disseminada.

A solução mais promissora é a biofortificação: criar plantas que, crescendo no solo e em condições já conhecidas, acumulem mais nutrientes nos grãos, folhas ou raízes que consumimos. Há exemplos reais. O betacaroteno é precursor da vitamina A, importante para a visão; sua carência leva milhares de crianças à cegueira permamente e até à morte, todos os anos. Por meio de cruzamentos entre variedades, é possível gerar um tipo de batata-doce que acumula betacaroteno.

Para a mesma finalidade, foi produzido o arroz dourado (golden rice), variedade de arroz modificado no qual a síntese betacaroteno, que normalmente ocorre nas folhas e raízes da planta, foi introduzida na semente – no arroz branco que consumimos –, deixando o grão cor de laranja. Populações que comem muita batata-doce ou arroz podem agora obter vitamina A em quantidades suficientes, utilizando as mesmas práticas agrícolas que lhes são familiares.

As inovações de que precisamos, no entanto, devem ser específicas e regionalizadas. É evidente que a genética tradicional, a modificação genética precisa, e a diversificação da dieta serão complementares. E deverão estar aliadas à sustentabilidade, exigindo conhecimento das plantas e seu ambiente. Para superar a fome oculta, precisaremos de soluções ainda mais diversas que a dieta de nossos ancestrais caçadores-coletores.

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Felipe Klein Ricachenevsky é professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.

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