Ciência Fundamental

O que pensam os jovens cientistas no Brasil?

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Descrição de chapéu sustentabilidade

Como recuperar a biodiversidade e gerar inclusão nas ruínas do Antropoceno

Mudanças simples nas relações socioprodutivas podem se tornar catalisadores de sustentabilidade

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Rafael L. G. Raimundo

Este texto é uma continuação do artigo "A ciência da complexidade como chave da sustentabilidade".

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A professora de antropologia da Universidade da Califórnia Anna Tsing introduziu uma visão do Antropoceno tão perturbadora quanto criativa. Seu argumento é que a presente época de dominância humana sobre os processos naturais corresponde às ruínas do capitalismo. Se vista en passant, a visão de Tsing torceria o nariz de faria limers e geraria uma centelha de indignação no olhar de muitos economistas. Entretanto, ela não é mera reedição da enferrujada dicotomia "capitalismo versus socialismo" que alimenta a obsessão de tantos.

arte ilustra uma pessoa sentada com as pernas cruzadas tecendo. elas tem pinturas indígenas na perna e veste uma roupa que remete à cultura indígena
Ilustração: Julia Jabur - Instituto Serrapilheira

A metáfora de Tsing avança uma frente científica transdisciplinar que investiga a aceleração da interferência humana sobre os ecossistemas. Nessa frente, a história de nossas economias e o futuro de suas relações com a biodiversidade e cultura são debates inescapáveis.

Quando examinei essa metáfora com minha lupa de biólogo, vi que a professora da Califórnia teve um insight poderoso que conecta cientistas sociais, cientistas naturais focados na conservação de espécies e economistas a valorar serviços ecossistêmicos. Essa perspectiva antropológica tira da zona de conforto a nova ciência de redes socioecológicas e outras abordagens para o estudo de bioeconomias.

As ruínas remetem a uma imagem de terra arrasada. Biologicamente, essa imagem funciona. As paisagens antropogênicas estão sob alta vulnerabilidade biológica e social, resultantes de múltiplos ciclos econômicos que predaram ecossistemas para gerar riquezas. Um dos motores dessa vulnerabilidade foi o desmatamento que eliminou e fragmentou habitats nativos em todos os biomas brasileiros, isolando a biodiversidade como ilhas desconectadas em um oceano de plantações, pastos, áreas de mineração e cidades.

Nas ilhas de biodiversidade, o processo pouco discutido da defaunação – a extinção local de animais que cumprem papéis ecológicos centrais, como grandes herbívoros, polinizadores e dispersores de sementes –colocou muitos ecossistemas em rota de colapso.

O risco de colapsos ecossistêmicos generalizados torna urgente a implantação de corredores ecológicos para restaurar a conectividade biológica das paisagens. Desde a fundação da biologia da conservação, essa ideia foi enfatizada pelo biólogo Michael Soulé (falecido em 2020) e muitos outros. Tsing vai além e invoca uma concepção de corredores que abrace as ciências humanas para reconectar mais holisticamente natureza, sociedade e economia.

Integrar perspectivas das ciências humanas na interface entre conservação e bioeconomia é crucial, uma vez que a ação antrópica segue não somente pulverizando a diversidade biológica, mas estraçalha a diversidade sociocultural em seus aspectos étnicos, linguísticos e artísticos. Com isso, desaparecem modos de vida, economias e conhecimentos locais associados a ecossistemas íntegros.

A homogeneização biocultural, a marca maior do Antropoceno, também contribui substancialmente para a desigualdade social. A ciência contra-hegemônica de resistência busca compreender e manejar a diversidade biológica e social e suas conectividades. Essa é a base de uma visão de redes socioecológicas para a transformação territorial. A grande questão é: como reconectar as ruínas, ligando espécies, empreendimentos e comunidades para integrar ecossistemas e bioeconomias baseadas em biodiversidade, inclusão e cultura?

Matematicamente, um sistema socioecológico pode ser modelado como uma rede multicamadas que descreve fluxos de recursos e serviços entre o ecossistema e a estrutura socioprodutiva formada por instituições públicas, comunidades e empresas. Extração de madeira, nutrientes do solo transformados em produtos agrícolas e água captada para criação de gado são exemplos de fluxos ocorrendo nessa rede que conecta sociedade e natureza.

Os componentes da rede socioecológica – plantações, pastos, reservas florestais, áreas agroindustriais ou agricultura familiar – têm objetivos diversos e frequentemente antagônicos. Reconexões criativas entre processos, pessoas e organizações que reconciliem conflitos dentro da rede podem pôr em sinergia ecologia, economia e cultura.

Atualmente, meu grupo e eu estamos usando abordagens de redes adaptativas para compreender como mudanças simples nas relações socioprodutivas podem se tornar catalisadores de sustentabilidade. Por exemplo, a integração de ações de educação, cooperativismo, produção agroecológica em escala e pagamento de serviços ambientais pode rapidamente fomentar cadeias produtivas baseadas na biodiversidade e cultura regionais, com inserção em mercados globais.

Os insights gerados por esses modelos trazem para a gestão territorial uma visão de redes em que ecossistemas, sistemas socioprodutivos e regras de uso dos recursos estão interconectados e coevoluem, norteados por valores de sustentabilidade, democracia e inclusão.

Transformar esses insights em inovações efetivas que estimulem bioeconomias sustentáveis depende da extensão da perspectiva de redes para a governança, um dos objetivos do nosso hub de ciência aberta aqui na Paraíba. A governança em rede é institucionalmente policêntrica e o locus onde podem ser socialmente pactuados investimentos público-privados estratégicos para fomentar políticas, projetos e empreendimentos integrados. Essa integração depende do diálogo entre ciência acadêmica, conhecimentos tradicionais, movimentos sociais e múltiplos setores econômicos. O desafio de construção de governança com base em ciência, participação social e pluralidade de perspectivas mostra que o rumo de nosso futuro comum depende fundamentalmente da reinvenção da democracia.

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Rafael L. G. Raimundo é professor do Departamento de Engenharia e Meio Ambiente e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Monitoramento Ambiental da Universidade Federal da Paraíba – Campus IV.

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.

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