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Descrição de chapéu alimentação

A origem artificial da nossa comida

Estamos modificando nosso alimento há muito tempo. O que é saudável e o que não é?

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Felipe Ricachenevsky

"Tudo que é natural é bom": o pressuposto impacta o que entendemos por alimentação, terapias, medicina, padrão de consumo e estilo de vida. Diante de duas opções, uma associada ao que julgamos ser natural e outra percebida como artificial, tendemos a escolher a primeira. O remédio proveniente da planta, em vez do comprimido sintetizado em laboratório; a fibra de algodão da camiseta em detrimento da sintética; a valorização da "naturalidade" de determinados comportamentos, como se ela os tornasse mais aceitáveis – alguém apontando que chimpanzés podem ser violentos, justificando a violência humana.

Mas a falácia naturalista está sem dúvida mais presente no que comemos: comida saudável e natural se tornaram quase sinônimos, e se alimentar de "produtos naturais" parece ser a melhor maneira de cuidar da saúde. No entanto, quase tudo que comemos foi drasticamente alterado pelos humanos. Sobretudo as plantas.

arte ilustr um prato azul com alguns alimentos naturais, como couve e couve-flor de várias cores
Ilustração: Julia Jabur - Instituto Serrapilheira

Estamos modificando nossa comida há muito tempo e de muitas maneiras. A revolução agrícola começou por volta de 11 mil anos atrás, quando, em diferentes lugares do planeta, percebemos que poderíamos plantar parte das sementes que coletávamos, garantindo assim um suprimento mais previsível. Rapidamente selecionamos sementes maiores, plantas que produziam mais e com as características de que mais gostávamos, como facilidade para cozinhar, além de sabores e aromas.

As espécies originais, que viviam em seu ambiente nativo, sem nossa interferência, lentamente se tornaram muito diferentes, e codependentes dos humanos. Antes difíceis de digerir, pouco saborosas e insuficientes para alimentar uma grande população, hoje as frutas, folhas e raízes comestíveis são robustas, atrativas e cheias de açúcar, gordura e proteína. A lista é longa: batata, cenoura, tomate, berinjela, cevada, milho, arroz, feijão, lentilha, café, cacau. Assim como o galgo, o lulu-da-pomerânia e o são-bernardo são lobos modificados, as plantas que mais consumimos também foram criadas pela seleção artificial.

Nossos alimentos são, portanto, criações nossas. O repolho, o brócolis, a couve, a couve-flor, a couve-de-bruxelas são uma única espécie; todos derivam do mesmo ancestral selvagem – mutantes espontâneos que nos agradaram e que mantivemos em nossas plantações. Frutíferas como maçãs, laranjas e uvas são em geral produzidas por propagação clonal, processo que ocorre quando uma planta-mãe com características interessantes – que também surgem por mutações espontâneas – é utilizada para gerar mudas idênticas geneticamente. E esses clones são muitas vezes enxertados: duas plantas distintas são unidas pelo caule, uma fornecendo suas raízes e a outra a copa e, no futuro, os frutos. Um Frankenstein vegetal, do qual há alguns séculos a humanidade se serve.

Há ainda o muito mais recente kiwi. De uma fruta de origem chinesa do tamanho de uma uva, a gooseberry, realizou-se uma seleção artificial na Nova Zelândia para tamanho, sabor e durabilidade, e o resultado foi batizado como kiwifruit, em homenagem à ave típica do país e ao apelido dos neozelandeses, já na metade do século 20. Em menos de cem anos, uma nova fruta foi criada por seleção artificial.

A revolução verde das décadas de 1950 e 1960 trouxe outras modificações para nossa mesa. A adição de fertilizantes, importante para aumentar a produção de grãos, também atuou no desenvolvimento da planta, que crescia muito e tombava, ocasionando perdas e dificultando o manejo das máquinas. Uma solução: bombardear com radiação sementes de trigo, um dos principais grãos, induzindo mutações aleatórias no genoma.

Muitas dessas mutações foram desastrosas; outras, imperceptíveis, enquanto ainda outras tornaram as plantas menores, menos propensas ao tombamento e mais produtivas. São as variedades semi-anãs. A melhoria por cruzamento introduziu mutações similares no arroz e no milho, hoje disponíveis no mundo todo – você decerto as consome. Curiosamente, os genes alterados por essas mutações só foram identificados nos anos 2000.

E não são as únicas: a toranja ou pomelo, por exemplo, resulta de um híbrido – o cruzamento de duas plantas diferentes, com a preservação dos cromossomos originais – que posteriormente sofreu mutações por radiação para produzir variedades com polpa muito vermelha. Métodos similares para gerar novas variedades com características de interesse comercial são empregados há décadas em laranjas, tomates, uvas, girassol, cevada e mesmo plantas ornamentais.

A distinção entre natural e artificial muitas vezes não funciona. Hoje já é possível inserir no genoma vegetal genes de outras variedades, espécies de plantas ou mesmo organismos muito distantes, adicionando ou modificando características de maneira mais precisa. O método mais utilizado se baseia na habilidade natural de uma bactéria capaz de introduzir parte de seu DNA no genoma vegetal. Sim, isso ocorre o tempo todo na natureza.

Não faz muito, descobrimos que todas as variedades de batata-doce consumidas – também selecionadas artificialmente pelos humanos –- contêm DNA bacteriano em seu genoma. A batata-doce é um transgênico natural, e nem por isso é menos segura. Outro exemplo: a variedade transgênica milho BT produz uma proteína que impede a planta de ser consumida por uma lagarta, protegendo a plantação. Essa mesma proteína, normalmente presente na bactéria Bacillus thuringiensis, é considerada um agrotóxico natural e vem sendo utilizada para o controle da lagarta em cultivos comuns. Nossa percepção do milho transgênico nos alerta que "artificial é perigoso", ao passo que a mesma molécula, produzida de forma considerada natural, nos parece sem riscos.

Alimentos são seguros ou saudáveis independente de terem origem natural ou artificial. Produtos para consumo humano devem ser testados cuidadosamente, e os resultados serão válidos apenas para o produto sob teste, caso a caso, não importa a origem. Na era em que modificações ainda mais precisas do genoma das plantas são possíveis por edição gênica, é crucial compreender que estamos sempre alterando o que consumimos. Cabe atentar a que modificações faremos, se elas beneficiam as populações que mais precisam e se são ambientalmente sustentáveis.

O futuro da humanidade necessitará de alimentação diversa, universal e abundante, e será fundamental superar esse viés cognitivo a fim de que possamos utilizar todas as ferramentas disponíveis para resolver os múltiplos problemas que enfrentamos, que tendem a ser multifatoriais e locais. Naturais ou artificiais, o importante é encontrar soluções.

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Felipe Klein Ricachenevsky é professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.

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