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Descrição de chapéu indústria

Vestidos para intoxicar

Roupas podem conter contaminantes tóxicos à saúde e ao ambiente

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Rossana Soletti

Quando, em 2011, os comissários da Alaska Airlines receberam uniformes resistentes a água e manchas, eles não imaginavam que naquele momento tinha início uma jornada de anos para provar que aquelas roupas eram tóxicas. Assim que os uniformes novos chegaram, casos de alergias começaram a ser relatados, e a lista engordou com queixas de problemas respiratórios, enxaqueca, fadiga e até o aparecimento de doenças autoimunes. Quando as reclamações somavam cerca de 800 casos, os comissários entraram com uma ação coletiva contra a fabricante das roupas.

A falta de evidências científicas quanto à toxicidade dos tecidos prejudicou a causa. Os funcionários perderam mas não se renderam: logo encomendaram uma análise laboratorial, e ela detectou a presença de produtos químicos irritantes para a pele e o sistema respiratório — metais pesados como chumbo, cobalto e cromo, além de um corante banido na União Europeia pelo potencial carcinogênico, e outros compostos que podem agir como hormônios, alterando as funções fisiológicas.

arte ilustra uma pessoa paramentada com um uniforme branco de proteção pendurando roupas no varal
Ilustração: Julia Jabur - Instituto Serrapilheira

Um grupo de cientistas de Harvard que realizava uma pesquisa com comissários de bordo acompanhou o caso dos funcionários da Alaska Airlines de 2007 a 2015, e provou que a introdução dos novos uniformes estava ligada ao aumento de queixas de saúde. Mesmo após a publicação do artigo científico, em 2018 pipocaram reclamações em relação a outras companhias aéreas que adotaram roupas de poliéster com maior resistência a manchas e chamas. Alterações na saúde em decorrência de produtos tóxicos presentes em roupas não são incomuns, embora na maior parte dos casos seja muito difícil creditar à vestimenta a verdadeira causa do problema.

A indústria têxtil utiliza várias substâncias que podem ter efeitos adversos à saúde, como metais pesados, pesticidas, corantes, microplásticos, retardantes de chama e impermeabilizantes. Os tecidos não vêm com listas de componentes, e não temos como saber a quais contaminantes estamos expostos. As roupas ficam o tempo todo em contato com a pele, mas não sabemos quanto absorvemos dessas substâncias nocivas, e nem se a concentração absorvida poderá provocar efeitos agudos ou crônicos em nossa saúde. As pesquisas nessa área têm crescido nos últimos anos, mas a maior parte concentra-se na detecção e quantificação dos produtos químicos em peças de roupas. Uma das dificuldades é justamente realizar as análises, já que são milhares os componentes que podem oferecer toxicidade. Só de corantes sintéticos já existem mais de 10 mil tipos no mercado, e estudos conduzidos em animais ou células humanas mostraram que alguns deles podem provocar danos no DNA e alterações no metabolismo e em hormônios sexuais.

Análises realizadas em amostras de uniformes escolares dos Estados Unidos e do Canadá detectaram em todas elas a presença de PFAS, compostos químicos com cadeias lineares contendo muitos átomos de flúor. Estudos recentes apontam diversos efeitos tóxicos decorrentes de PFAS, incluindo alterações no neurodesenvolvimento, no comportamento e na imunidade infantil.

Até calcinhas absorventes vendidas como "orgânicas, seguras, saudáveis e sustentáveis" não se saíram bem nesse escrutínio químico. O grupo do professor Graham Peaslee, da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, encontrou altos níveis de PFAS em peças de higiene feminina da marca Thinx. Após uma polêmica no início de 2023, a fabricante passou a oferecer uma compensação financeira às consumidoras e a cobrar dos fornecedores garantias de que não ocorra a adição de PFAS nos tecidos.

O formol, produto químico muito utilizado na indústria têxtil e de reconhecida toxicidade, frequentemente aparece em análises de peças de vestuário. Uma pesquisa recente na Espanha encontrou níveis significativos dessa substância em roupas destinadas a gestantes, bebês e crianças, inclusive em peças íntimas feitas de algodão orgânico e com apelo ecológico. Como nas peças pré-lavadas o formol está ausente, sugere-se lavá-las antes do primeiro uso. As lavagens também podem reduzir a concentração de outros produtos tóxicos nos tecidos, diminuindo o risco de absorção pela pele. Porém, aqui chegamos a outro problema: as substâncias liberadas na lavagem contaminam o ambiente e podem exercer efeitos negativos nos ecossistemas.

A indústria têxtil já é considerada uma das mais poluentes do mundo. Além da enorme quantidade de produtos tóxicos liberados durante a produção das matérias-primas, o próprio uso e descarte das roupas podem causar prejuízos ambientais. Países desenvolvidos estão exportando peças usadas para locais onde são revendidas e descartadas. Um aterro nos arredores de Acra, a capital de Gana, tornou-se um dos símbolos dessa crise, com roupas despencando de pilhas de 20 metros e sendo levadas pelo mar. Imagens aéreas do deserto de Atacama, no Chile, têm mostrado o crescimento vertiginoso de um lixão de roupas vindas de países desenvolvidos — que recebe cerca de 40 mil toneladas por ano, e já pode ser visto do espaço.

Vestir é uma necessidade humana e o mundo consome cada vez mais roupas. Os investimentos em pesquisa sobre a toxicidade dos produtos químicos nos tecidos e o desenvolvimento de processos de remediação dessa poluição deveriam ser prioridades, assim como regulamentações e definições claras a respeito dos produtos que estamos comprando.

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Rossana Soletti é doutora em ciências morfológicas e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.

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