Ciência Fundamental

O que pensam os jovens cientistas no Brasil?

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A papelocracia da pesquisa brasileira

A burocracia e a carga administrativa levam os cientistas a fazer menos ciência

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Thiago Gonçalves

Qual é a maior dificuldade para fazer pesquisa científica no Brasil? Tenho certeza de que a maioria das pessoas, cientistas ou não, dirá que é a falta de dinheiro. Não estão completamente erradas: a falta de verbas é, efetivamente, um grande desafio para nós. Os Estados Unidos, por exemplo, investem 3,5% de seu produto interno bruto em pesquisa; na Coreia do Sul, os valores chegam a 4,9%, enquanto no Brasil esse valor é de apenas 1%.

No entanto, esse não é o único obstáculo que enfrentamos. Existe outro, nem sempre do conhecimento de todos: a burocracia —a papelada desnecessária—, e a carga administrativa —como as tarefas extras de direção, coordenação etc.

arte ilustra uma pessoa ajoelhada e carregando um planeta nas costas
Ilustração Clarice Wenzel/Instituto Serrapilheira

Em pesquisa liderada por Donizeti Leandro de Souza, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais, um grupo de cientistas produziu, a partir de questionário respondido por cientistas de diversas áreas, uma lista na qual o problema número um era, realmente, a escassez de recursos para a pesquisa. Os quatro itens seguintes eram (1) a burocracia nos processos de planejamento, execução e avaliação; (2) falta de uma equipe de apoio para auxiliar o pesquisador; (3) acúmulo de funções do pesquisador (ensino, pesquisa, extensão); e (4) infraestrutura de pesquisa deficitária.

Em outra pesquisa, esta no Reino Unido, cientistas afirmaram que dedicavam cerca de 48% de seu tempo a atividades de pesquisa. Quem me dera passar metade do meu tempo fazendo pesquisa e dando aula! Ao contrário, temos uma sobrecarga de trabalho com tarefas administrativas para as quais não fui treinado.

No exterior, por exemplo, ao receber verbas de agências governamentais para um projeto de pesquisa, o cientista aciona o sistema —de sua universidade ou instituto— encarregado de administrar a verba. Aqui, o dinheiro é associado ao CPF, obrigando-nos inclusive a abrir uma conta no banco como pessoa física. É um dia de trabalho perdido em filas e cartórios.

Certa ocasião, recebi dinheiro de uma agência federal para colaborações com pesquisadores na Alemanha. Parte da verba era destinada à compra de material, que requer aprovação prévia da agência. Na primeira vez, pedi grande quantidade dos itens que mais utilizamos, como tinta de impressora e cadernos de anotação, mas tive o pedido negado porque havia um limite de cinco itens de cada produto.

Dediquei várias horas a buscas de preço na internet de diversos materiais de escritório, mas o pedido foi novamente negado porque não poderíamos comprar, por exemplo, cinco canetas pretas e cinco vermelhas, como se fossem o mesmo item. As respostas chegavam em até três semanas, então podem imaginar o tempo total gasto na comunicação para meu grupo de pesquisa poder finalmente dispor de canetas.

A complicação é ainda maior ao final do projeto. Devemos comprovar todos os gastos, claro, já que estamos usando verba pública. No entanto, as instruções são esdrúxulas a ponto de pedir que colemos todos os recibos em folhas de papel A4. O manual afirma que, se seu recibo está em formato A4, você deve colá-lo em outra folha A4!

As dificuldades não se limitam, porém, a instituições externas às universidades. Dentro delas, temos uma sobrecarga de tarefas administrativas, comitês, grupos de trabalho. Sou agora diretor do instituto onde trabalho, e lido frequentemente com problemas como falta de internet, supervisão de obras e reuniões burocráticas. É um mau aproveitamento de um profissional superespecializado (com doutorado em astrofísica) e que, afinal, não foi contratado originalmente para realizar essas tarefas.

De certa forma, podemos atribuir os problemas novamente à escassez de recursos. Afinal, com mais verbas, poderíamos contratar mais profissionais administrativos para tornar o trabalho mais eficiente. Na universidade a que pertenço, sei que os técnicos administrativos estão, em grande parte, sobrecarregados de tarefas, cada um deles realizando, sozinho, uma carga de trabalho que deveria ser dividida entre pelo menos dois outros colegas.

Ainda assim, minha maior preocupação é a inércia burocrática do sistema. Quando menciono o problema, frequentemente escuto que "sempre foi assim", como se isso fosse desculpa para não resolvermos a questão.

A grande maioria das regras e leis que regem a administração universitária e de institutos de pesquisa é produzida por legisladores que não conhecem a realidade da ciência no país. Em exemplo recente, todo o processo de compra de materiais na minha instituição foi removido dos institutos e centralizado em um setor administrativo que deve gerir os processos financeiros de quase dez departamentos simultaneamente. Em nome de uma suposta transparência orçamentária, perdemos autonomia e eficiência; agora não apenas recebemos pouco dinheiro, mas temos enorme dificuldade em gastar essa verba, já que hoje duas pessoas devem cuidar de dez vezes mais licitações ao longo do ano.

A conclusão é urgente: devemos priorizar a ciência nas discussões políticas. Devemos garantir mais verbas para as pesquisas, sem dúvida, mas também devemos lutar para que essas verbas sejam utilizadas de forma eficiente. Devemos aproximar os pesquisadores dos tomadores de decisão, garantindo que os regulamentos sejam feitos por cientistas, para cientistas. Se desejamos realmente que a ciência seja força motriz do crescimento interno do país, temos que oferecer aos cientistas a infraestrutura necessária para que realizem suas pesquisas sem entraves burocráticos e sobrecarga administrativa.

*

Thiago Gonçalves é astrônomo, diretor do Observatório do Valongo da Universidade Federal do Rio de Janeiro e divulgador de ciência.

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.

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