Passei o aniversário de 22 anos no hostel em que morei, por pouco mais de um mês, em Londres. Só para situar a antiguidade do fato, era 1992.
Eu era um jovem mimado, arrogante e autodestrutivo. Viajei com dinheiro do meu pai, direto de três meses de vagabundagem na Califórnia.
Privilegiado, sem dúvida, cheguei a Londres decidido a sofrer. E logrei êxito na tentativa, pois é fácil demais sofrer em Londres.
O clima era tão ruim quanto diziam, ainda pior sem o aparato adequado para encarar a garoa gelada e incessante. Foi um mês, ou pouco mais, de roupas e sapatos molhados.
No hostel, dormia num quarto de múltiplos beliches e cheiro de chulé. Mal cabia no banheiro. O subsolo tinha uma cozinha coletiva em que alemães faziam espaguete com ketchup.
No afã de ganhar uns tostões, arrumei bicos surrealmente péssimos.
Num deles, um picareta australiano enfiava quatro infelizes (eu mais três) no carro e os soltava em diferentes quadras da mesma região. Nossa missão: tocar todas as campainhas para vender pinturas deploráveis, quadros de palhaço e de menino chorão.
Eu, por óbvio, só tomei porta na cara. No terceiro dia de humilhação, meu aniversário, cheguei para o boss e me demiti.
Àquela altura da vida, poucas vezes eu havia me sentido tão mal.
O frio, as caras fechadas, a distância de casa, tudo estranho, comida estranha. Um pouco too much para um pirralho de classe média-alta paulistana, ignorante de tudo que não fosse o quintal de casa.
Exausto, molhado e com frio (a fome eu me acostumei a sublimar), cheguei ao hostel, pedi uma cerveja e fui papear com os outros estrangeiros.
O telefone tocou, e a moça da recepção me chamou. Só poderia ser engano, ninguém que eu conhecia tinha aquele número.
Não era engano. Era meu pai, que sei lá como pesquisou o telefone e ligou para me dar os parabéns.
Chorei de alegria como agora choro de saudade.
*
Eu um mês, voltarei a Londres para passar pouco mais de um mês. Agora o pai sou eu.
Minha filha faturou uma bolsa de mestrado e me convocou para ajudá-la na adaptação –seu marido só pode viajar no fim do ano.
Vou empolgado, decidido a sofrer o mínimo possível. Vou disposto a distrair filha e neto da tristeza.
Tarefa difícil –a tristeza, em Londres, é como a chuva fina–, mas tentarei.
Com o devido respeito pelo fish and chips, vou resoluto a instalar um naco do Brasil na cozinha. Londres que ature a Cozinha Bruta. Ou seria Brutal Cuisine?
Vou com ganas de revirar a cidade atrás de pão de queijo, cuscuz e tapioca. Vou cozinhar arroz e feijão –feijão com alho e toucinho, não o feijão doce do English breakfast.
Quem sabe assim a saudade dá uma folga.
*
A recepcionista do hostel não falava português, mas entendeu tudo. Assim que desliguei o telefone aos prantos, ela me deu um abraço, um beijo no rosto –meu primeiro contato humano na Grã-Bretanha– e estendeu um Kit-Kat que normalmente custava dinheiro.
Sem desmerecer a culinária inglesa, foi a melhor refeição da viagem.
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