Cozinha Bruta

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Descrição de chapéu alimentação

O ovo com gema mole e a certeza da morte

Trombeteiros do apocalipse tocam terror com o risco de você, ao almoçar um ovo frito, antecipar o inevitável: morrer

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São Paulo

Sonhei que estava morrendo.

Não tinha medo. Sentia tristeza e culpa.

Triste e culpado por não poder consertar os erros do passado. Por todos os planos que esbocei e nem tentei realizar. Por nunca ter conseguido dizer tudo o que tinha para dizer –a gente sempre pensa que tem algo muito importante a dizer.

Não lutava, me deixava levar. Sabia que brigar com a morte seria estupidez.

Curry rice com ovo frito
Curry rice com ovo frito - Marcos Nogueira

Penso na infalibilidade da morte quando leio as recorrentes manchetes sobre os minutos de vida que me rouba cada copo de cerveja. Cada torresminho oleoso. Cada vez que me rendo à preguiça e cabulo a academia.

As redes sociais renovaram o fôlego dos trombeteiros do apocalipse, dos arautos do terror alimentar. Da galera que fatura grana ou popularidade disseminando o medo de morrer na próxima garfada.

A garfada derradeira, pregam os profetas do piriri letal, pode vir com ovo malpassado. A temerária gema mole.

Explica-se: as bactérias do gênero Salmonella, que vivem nas entranhas da galinha, podem contaminar seus ovos. Para matar o bicho, é necessário cozinhar o ovo até ele atingir a temperatura interna de 70 ºC –ponto em que a gema já ficou irremediavelmente dura e seca.

Gemas líquidas ou cremosas trazem riscos: contaminação, infecção, desidratação severa. E adivinha o quê? Morte, aquela que fatalmente baterá às nossas portas algum dia.

É um risco que topo correr, até porque não é tão grande assim. Tenho comido ovo malcozido desde a infância e não morri... ainda.

Não me recordo de ninguém que tenha ficado doente com ovo de gema mole (há os famosos surtos de diarreia por maionese de ovo cru, mas eles envolvem uma sequência de práticas culinárias irresponsáveis).

O que tenho na lembrança:

Os ovos quentes que minha mãe pedia para mim, no café da manhã do hotel, nas férias em Serra Negra. A primeira francesinha que comi (é o nome de um sanduíche, gente) no Porto, coberta por um ovo frito com gema languidamente pastosa.

Impossível esquecer também a única vez em que me foi negado o prazer da gema mole. Aconteceu em Berlim, com um garçom germanicamente fiel à lei municipal antiovo. Como ele pôde fazer tal coisa com alguém que vai morrer?

Então acordei em sobressalto. Ainda estava escuro.

Acho estranho acompanhar o nascer do dia. Ocorre raramente, em geral quando preciso pegar um voo muito cedo.

No caminho do aeroporto, pela janela do táxi, vejo o trânsito dos madrugadores e dos boêmios, comerciantes erguendo as portas de enrolar, a equipe da prefeitura lavando a rua com caminhão-pipa.

Toda uma vida que está pouco se lixando para mim, o horário do meu voo, o meu sono e os meus sonhos de morte. É como se eu observasse clandestinamente uma realidade em que não existo.

Passei um café, batuquei este texto, pensei em me fazer uns ovos, mas desisti. Voltei para a cama e meus sonhos intranquilos.

Para quem está desperto e talvez cogite comer ovos com gema mole, fica o aviso: você vai morrer.

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