Uma rápida postagem nas redes sociais do historiador Marcos Leitão de Almeida, especialista em história africana, descortinou um mundo completamente insuspeito para mim, e creio que vale muito compartilhar essa pequena pepita de ouro com os leitores do blog. Almeida citou um estudo que mostra como a antiga tradição monárquica da Etiópia acabou usando uma justificativa de origem bíblica, muito semelhante à empregada pelos europeus da Era Colonial, para sacramentar seu direito a escravizar povos vizinhos.
Refrescando rapidamente a memória de quem não lê o livro do Gênesis faz tempo: depois do dilúvio, Noé (sim, aquele da arca) planta videiras, usa as uvas para fazer vinho e se embriaga, deixando-se largar desnudo em sua tenda. Dos seus três filhos, chamados Sem, Cam e Jafé, apenas Cam não toma cuidado para não observar a nudez de seu pai bêbado, enquanto os outros dois cobrem-no de costas, para não desrespeitá-lo. Resultado: ao se recuperar da embriaguez, Noé amaldiçoa Cam e diz que seus descendentes serão escravos de Sem e Jafé.
Acontece que, na tradição hebraica, os povos supostamente descendentes de Cam incluem grupos africanos, como os egípcios e os núbios (mas também nações do Oriente Próximo). Já os israelitas descenderiam de Sem (é de onde vem a palavra "semita", é claro).
Por causa da associação entre o "maldito" Cam e a África, alguns europeus passaram a justificar ideologicamente a escravidão de povos africanos com base no relato bíblico. A pele negra, inclusive, seria vista como um sinal dessa maldição. Em paralelo, porém, algo parecido já tinha sido formulado pelo império cristão da Etíope, que já tinha adotado o monoteísmo e sua reverência ao texto da Bíblia desde o século 4o. d.C.
É o que argumenta Jonathon Glassman, da Universidade Northwestern (EUA), neste estudo de 2021, citado por Almeida. Ele lembra que os reis cristãos etíopes descreviam a si mesmos como "a semente de Sem" e descendentes do rei Salomão, filho de David, que se unira a uma rainha africana. De fato, parte dos habitantes do planalto etíope falava línguas semitas, sinal de antigos contatos entre a África e o Oriente Próximo.
A origem semita e "davídica" dos monarcas era vista como justificativa para subjugar povos mais distantes dessa esfera cultural. Entre eles se destacavam os "shankilla", nome dado a pastores que falavam línguas do grupo nilo-saariano (totalmente diferente da família linguística semita). Para os soberanos etíopes, eles só podiam ser escravos e seu "negrume" (a intensidade do tom negro de sua pele) era sinal de degradação.
Justificativas para dominação despótica e hierarquização de povos, infelizmente, existem no mundo todo, e a África não é exceção -- o que, claro, não é motivo para justificar o impacto do tráfico de escravos via Atlântico praticado durante séculos pelos europeus.
(Este talvez seja apenas o começo de uma série sobre história etíope por aqui. O passado do lugar é fascinante.)
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