Darwin e Deus

Um blog sobre teoria da evolução, ciência, religião e a terra de ninguém entre elas

Darwin e Deus - Reinaldo José Lopes
Reinaldo José Lopes
Descrição de chapéu África

Império da Etiópia também tentou dar bases bíblicas para racismo

Usando narrativa sobre filhos de Noé, reino justificava dominar povos 'bárbaros'

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Uma rápida postagem nas redes sociais do historiador Marcos Leitão de Almeida, especialista em história africana, descortinou um mundo completamente insuspeito para mim, e creio que vale muito compartilhar essa pequena pepita de ouro com os leitores do blog. Almeida citou um estudo que mostra como a antiga tradição monárquica da Etiópia acabou usando uma justificativa de origem bíblica, muito semelhante à empregada pelos europeus da Era Colonial, para sacramentar seu direito a escravizar povos vizinhos.

Refrescando rapidamente a memória de quem não lê o livro do Gênesis faz tempo: depois do dilúvio, Noé (sim, aquele da arca) planta videiras, usa as uvas para fazer vinho e se embriaga, deixando-se largar desnudo em sua tenda. Dos seus três filhos, chamados Sem, Cam e Jafé, apenas Cam não toma cuidado para não observar a nudez de seu pai bêbado, enquanto os outros dois cobrem-no de costas, para não desrespeitá-lo. Resultado: ao se recuperar da embriaguez, Noé amaldiçoa Cam e diz que seus descendentes serão escravos de Sem e Jafé.

Igreja medieval de são Jorge em Lalibela, na Etiópia
Igreja medieval de são Jorge em Lalibela, na Etiópia - Witold Ryka/Witold Ryka/Fotolia

Acontece que, na tradição hebraica, os povos supostamente descendentes de Cam incluem grupos africanos, como os egípcios e os núbios (mas também nações do Oriente Próximo). Já os israelitas descenderiam de Sem (é de onde vem a palavra "semita", é claro).

Por causa da associação entre o "maldito" Cam e a África, alguns europeus passaram a justificar ideologicamente a escravidão de povos africanos com base no relato bíblico. A pele negra, inclusive, seria vista como um sinal dessa maldição. Em paralelo, porém, algo parecido já tinha sido formulado pelo império cristão da Etíope, que já tinha adotado o monoteísmo e sua reverência ao texto da Bíblia desde o século 4o. d.C.

É o que argumenta Jonathon Glassman, da Universidade Northwestern (EUA), neste estudo de 2021, citado por Almeida. Ele lembra que os reis cristãos etíopes descreviam a si mesmos como "a semente de Sem" e descendentes do rei Salomão, filho de David, que se unira a uma rainha africana. De fato, parte dos habitantes do planalto etíope falava línguas semitas, sinal de antigos contatos entre a África e o Oriente Próximo.

A origem semita e "davídica" dos monarcas era vista como justificativa para subjugar povos mais distantes dessa esfera cultural. Entre eles se destacavam os "shankilla", nome dado a pastores que falavam línguas do grupo nilo-saariano (totalmente diferente da família linguística semita). Para os soberanos etíopes, eles só podiam ser escravos e seu "negrume" (a intensidade do tom negro de sua pele) era sinal de degradação.

Justificativas para dominação despótica e hierarquização de povos, infelizmente, existem no mundo todo, e a África não é exceção -- o que, claro, não é motivo para justificar o impacto do tráfico de escravos via Atlântico praticado durante séculos pelos europeus.

(Este talvez seja apenas o começo de uma série sobre história etíope por aqui. O passado do lugar é fascinante.)

Reinaldo José Lopes
Reinaldo José Lopes

Repórter de ciência e colunista da Folha. Autor de "Homo Ferox" e "Darwin sem Frescura", entre outros livros

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