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Luiza Pastor
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escalada

Meta dada, meta cumprida: o dia em que o Broad Peak foi verde-amarelo

O montanhista Moeses Fiamoncini chegou onde nenhum brasileiro havia pisado

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No dia 15 de julho passado, o blog publicou uma entrevista com o paranaense Moeses Fiamoncini, 42, que se preparava para cumprir mais uma das metas que havia se proposto: subir as 14 montanhas do planeta acima de 8 mil metros, todas localizadas na cordilheira que permeia Nepal, Paquistão e China. Só que o cume que tinha à frente, o Broad Peak, no Paquistão, com seus 8.051 metros, era muito especial: ele seria o primeiro brasileiro a levar a bandeira do nosso país àquela montanha. E assim foi feito, no dia 20 daquele mês, sem ajuda de carregadores e sem suporte de oxigênio, sabidamente rarefeito naquelas altitudes.

Moeses Fiamoncini, primeiro brasileiro a chegar ao cume da montanha Broad Peak, mostra a bandeira
Moeses Fiamoncini, primeiro brasileiro a chegar ao cume do Broad Peak, montanha do Paquistão - Acervo Pessoal / Moeses Fiamonci

E foi para conferir a façanha e o andamento de seu desafio que Fiamoncini mandou, entre um acampamento e outro, e sempre com grande dificuldade para acessar a internet, um pouco do que foi essa escalada inédita.

Como foi ser o primeiro brasileiro a chegar no cume do Broad Peak? Foi além de especial. Alcançar o cume de uma montanha de 8 mil metros, sem uso de oxigênio, sempre é uma grande realização, independentemente de quantas ascensões do gênero você já tenha feito antes. E, como nós, brasileiros, sempre vamos amar nossa bandeira, foi emocionante levá-la ao alto, foi uma vitória do Brasil.

Quais foram as principais dificuldades que enfrentou nessa subida? O Broad Peak, embora tenha uma altitude menor que o vizinho K2, que tem 8.611 metros, pode ser tão difícil quanto ele, que eu já havia escalado em 2019. Neste ano, uma intensa onda de calor atingiu boa parte do hemisfério norte e deixou as montanhas ainda mais perigosas. Temperaturas acima do normal fazem com que blocos de gelos e pedras se desprendam mais facilmente. Houve vários acidentes e, infelizmente, alguns foram fatais. Para minimizar riscos, a estratégia que escolhi foi subir para os campos altos durante a noite, quando as temperaturas estão mais baixas, e descansar durante o dia.

Anoitecer na montanha Broad Peak, no Paquistão
Anoitecer na montanha Broad Peak, no Paquistão - Acervo Pessoal / Moeses Fiamonci

Mesmo assim, havia um fator mais grave que complicou as ascensões ao Broad Peak nesta temporada. Geralmente, as empresas que organizam expedições são responsáveis por instalar as cordas fixas nas montanhas, o que faz muita diferença e aumenta a segurança na hora de escalarmos. Este ano, uma empresa europeia, muito experiente, foi contratada para esse serviço mas, um pouco antes do cume, há uma crista que exige muita atenção para ser ultrapassada, se chama Rock Summit. Um paquistanês que estava trabalhando com o grupo caiu desse ponto e desapareceu em um abismo de mais de 2.500 metros de profundidade. Como a montanha fica na fronteira entre Paquistão e China, e ele caiu do lado chinês, um helicóptero foi acionado, mas não encontraram o corpo.

Esse incidente fez com que o grupo abandonasse o trabalho, deixando justamente a parte mais técnica e perigosa da montanha sem cordas fixas. Essa foi uma das razões que impediram muitas pessoas de chegarem ao cume do Broad Peak esta temporada. Alguns desistiram, outros tentaram e não conseguiram passar a última parte, que é realmente perigosa e fica há pouco menos de 200 metros do cume. Para piorar a situação, houve outro acidente fatal com um inglês, neste mesmo local, um dia antes da minha chegada ao cume. Como o paquistanês, ele também caiu do Rock Summit, mas a queda de mais de 1.500 metros foi para o lado do Paquistão, e todos nós a vimos do campo 3.

Como é assistir a uma cena dessas e se imaginar subindo o mesmo caminho daí a pouco? Quando você presencia algo assim, precisa de um foco absurdo para não desistir do que está fazendo. Embora eu estivesse escalando o Broad Peak sem ajuda de carregadores, na noite do ataque ao cume escalei próximo a um grupo de 4 pessoas com 3 diferentes nacionalidades. Apesar da queda do inglês, decidimos mesmo assim subir e ver com os próprios olhos como estaria essa parte do Rock Summit. Quando chegamos nesse local estávamos bem e com energia para manter a atenção, então decidimos continuar e, felizmente, deu tudo certo.


Depois do Broad Peak você ainda foi para outras montanhas, não? Sim, eu fui escalar a Gasherbrum 2 (8.035m), chamada de G2, que foi uma escalada rápida, porque a previsão do tempo só sinalizava 5 dias seguidos de clima bom e, se perdesse essa oportunidade, poderia ser a última janela da temporada. Então, após fazer cume no Broad Peak, descansei um dia no campo base e no dia seguinte caminhei 10 horas até o campo base do G2. Chegando lá, soube que havia outras 7 pessoas (de diferentes nacionalidades) que no dia seguinte começariam a subir. Me juntei ao grupo, o que ajudou muito, pois dividi com eles as barracas nos campos altos, permitindo subir com a mochila um pouco mais leve.

Moeses Fiamoncini, com a bandeira do Brasil, no cume da Gasherbum 2, conhecida como G2, no Paquistão
Moeses Fiamoncini, com a bandeira do Brasil, no cume da Gasherbrum 2, conhecida como G2, no Paquistão - Acervo Pessoal / Moeses Fiamonci


O Broad Peak e o G2 são algumas das montanhas mais baixas das 14 de 8 mil metros, o que pode levar a imaginar que são mais fáceis. Eu mesmo pensava isso, mas já cheguei no Paquistão sabendo que não seria tão simples. Tanto o Broad Peak quando o G2 são montanhas muito difíceis, ou ao menos estavam mais difíceis nesta temporada, pelas condições climáticas. Foram semanas de nevascas intercaladas com semanas de temperaturas altas, nada típicas mesmo para o verão na região. Essa junção de muita neve com dias quentes é péssima.

Entre o campo base do G2 e seu campo 1, precisamos cruzar um glaciar de 12 quilômetros de extensão, extremamente perigoso. Foram 11 horas caminhando no meio de paredes de gelo com crateras abismais e sem cordas fixas, pois quase todas as cordas fixadas anteriormente já haviam sido soterradas pela neve ou arrancadas por avalanches. Decidimos usar a mesma estratégia do Broad Peak, avançar à noite e descansar durante o dia, para diminuir a chance de sermos atingidos por blocos de gelo que se desprendem com o calor do sol.

Moeses Fiamoncini, no glaciar de acesso ao cume do G2 - Acervo Pessoal / Moeses Fiamonci

Entre o campo 1 e o campo 2, escalamos uma parte chamada Banana Ridge, um paredão de gelo super íngreme de 500 metros de altura. Escalamos em 8 horas e chegamos ao campo 2. Na noite seguinte, subimos ao campo 3 e nesse trecho são frequentes as avalanches. Fomos atropelados por uma primeira avalanche, que não nos causou danos, mas arrebentou as cordas fixas. Daí a pouco, outra avalanche passou perto de nós e atingiu um mexicano que estava bem perto de mim. Ele ficou soterrado até o pescoço e eu o desenterrei. Foi outro susto, e maior. Levamos 7 horas para chegar ao campo 3, uma caminhada difícil porque a neve estava profunda.

Na noite seguinte, as 19h horas saímos do campo 3, que está a 7 mil metros de altitude. É um trajeto complexo pois há uma travessia difícil, onde caminhamos por 6 horas em neve profunda, nos mantendo na mesma altitude. Além disso, o clima fechou nesse dia, então além de não haver cordas fixas, não podíamos ver bem. Levamos 15 horas para chegar ao cume, no dia 27, e, apesar da realização que sentimos, sabíamos que descer também não seria simples. Enquanto fazíamos novamente a travessia para descer, fomos apanhados por uma avalanche que nos arrastou por 30 metros. A sensação foi de estar flutuando em uma onda. De qualquer forma, tivemos sorte. Se fosse uma avalanche mais intensa, poderia nos ter arrastado a um abismo de 3 mil metros de profundidade.

Quer dizer que o G2 foi pior que a Broad Peak? Posso dizer que o Gasherbrum 2 foi a montanha mais perigosa que eu já escalei até o momento. Não imaginei que fosse dizer isso após já ter tentado escalar duas vezes a perigosa Annapurna, mas essa conseguiu superá-la. Foi um alívio estar de volta ao campo base. Foi uma grande alegria chegar ao cume e uma alegria ainda maior chegar de volta, são e salvo, ao campo base.

Como é sua preparação e a aclimatação para fazer tantas subidas sem oxigênio e carregando todo o equipamento sozinho? A estratégia de aclimatação para montanhas de 8 mil metros de altitude pode se dar de maneiras distintas, especialmente para quem escala sem oxigênio, como no meu caso. Cada montanhista vai adotar a estratégia que lhe for mais conveniente. Como as montanhas de 8 mil metros não costumam ser das mais fáceis e seguras (e aclimatar é um processo que envolve subir até parte da montanha e descer, algumas vezes), poder aclimatar em montanhas mais seguras é o ideal. Só que esse ideal nem sempre é possível, por diversas razões.

Desta vez, antes de ir para o Paquistão, fui me aclimatar na Bolívia. Fiz algumas montanhas com mais de 6 mil metros de altitude e cheguei a 6.500 metros, no vulcão Sajama. Foi o suficiente para eu fazer somente uma rotação de aclimatação no Broad Peak, quando o necessário para quem chega não aclimatado são 3 rotações.

Quanto ao preparo físico para subir montanhas, o mantenho, basicamente... subindo montanhas. Quando não estou em montanhas de 8 mil, estou em montanhas menores com grupos de trekking. Isso me mantém sempre preparado. Nos poucos períodos em que não estou nas montanhas, faço exercícios de apoio (push ups) e ando de bike.

De qualquer maneira, o que mais conta para escalar esse tipo de montanha é o preparo psicológico. Eu observo que embora sejam montanhas super difíceis, há pessoas que chegam pouco preparadas física e tecnicamente tentando fazer 8 mil. Sempre há. Mas o que mais impede os montanhistas de chegarem ao cume é o psicológico. Não é fácil lidar com tudo o que envolve uma expedição a essas montanhas e manter o foco. Um detalhe, também, é que a experiência vai te fortalecendo. Uma pessoa já morreu nos meus braços em uma montanha de 8 mil metros, já vi corpos, já vi pessoas acidentadas. Já perdi grandes amigos, vi infinitas avalanches. Estive em um total de 11 expedições a montanhas com mais de 8 mil metros, então posso dizer que a cada uma delas fui me fortalecendo mais.

Em algum momento pensa voltar ao Brasil? Em outubro tenho um grupo para levar ao campo base do Everest. Só em novembro volto ao Brasil por 10 dias e, depois, sigo para o Equador, onde tenho um grupo agendado e, depois, um cliente privado. No final de dezembro, levo um grupo para o Kilimanjaro. E para 2023 a agenda segue a mesma: montanhas de 8 mil entre grupos de trekking e clientes.

Ou seja: pelo visto, vamos continuar a saber de Moeses Fiamoncini por suas raras entrevistas via satélite e os registros do Instagram.

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