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É Logo Ali - Luiza Pastor
Luiza Pastor

Minhocão, o parque roubado à obsessão urbana pelos carros

Além de atividades esportivas, o espaço oferece obras de arte em todo o seu entorno

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Quando era criança, morava com minha família na região central de São Paulo e, a caminho da escola, precisei desviar ao longo de um ano de blocos imensos de concreto que, mais tarde, viriam a se transformar no viaduto inaugurado em 1971 com o nome de Elevado Presidente Costa e Silva —mas desde o primeiro momento adotado (ou enjeitado) pela população como "o Minhocão".

Em 2016, o monstrengo que por anos infernizou os moradores de seu entorno, que viam milhares de carros praticamente entrarem por suas janelas sem qualquer preocupação das autoridades com o impacto social, mudou de nome e passou a se denominar Elevado Presidente João Goulart, em homenagem ao presidente deposto pelo golpe de 1964, a turma do ex-homenageado. Mesmo com todo o espírito democrático, entretanto, o Minhocão segue consagrado como, isso mesmo, Minhocão. E mais:desde 2018, com a assinatura do ex-prefeito João Doria, que sonhava com a High Line de Nova York, virou oficialmente parque. Parque Minhocão. Ou quase isso, vai.

Arquibancada e lugares de descanso instalados no Minhocão, viaduto na região central de São Paulo fechado para os automóveis à noite e nos fins de semana - Zanone Fraissat - 19.dez.21/Folhapress

O fato é que, apesar de se chamar parque, a única característica que assim o enquadra até o momento é o fechamento do acesso de carros das 20h às 7h nos dias de semana e das 20h da sexta-feira até as 7h da segunda, nos finais de semana. Pedestres podem utilizar o espaço das 20h às 22h durante a semana e das 7h às 22h aos sábados, domingos e feriados. Mas como assim, resmungam muitos, parque sem árvores, sem sombra, sem bebedouros ou banheiros? Pois é assim, sem nada disso, que a cidade se apropriou de seus 2,7 quilômetros de extensão entre a praça Franklin Roosevelt e o largo Padre Péricles.

O impedimento à circulação de carros no horário noturno levou algum sossego aos moradores do entorno, que não precisam mais conviver com a expectativa de acordar de madrugada com um motorista desgovernado no travesseiro ao lado. Mas nem por isso a polêmica em torno do Minhocão terminou. Embora tenha sido efetivado como parque e tenha ganhado quatro áreas de descanso montadas a cada fim de semana e feriado com bancos e tablados de madeira, seu destino final só será selado em 2029, como explicita a Lei 16.050/14 em seu artigo 375. Lá se prevê "a desativação gradual do Elevado para veículos até 2029, podendo transformá-lo, parcial ou integral, em parque ou demoli-lo", como informa a assessoria da SPTuris (São Paulo Turismo), órgão gestor do pedaço.

Nos finais de semana, o Minhocão recebe uma média de 9 mil visitantes - Gabriel Cabral - 25.jul.21/Folhapress

Ou seja, até lá, o parque se limitará a ser o que é: uma via de concreto roubada à obsessão urbana pelos carros, com alguns enfeites aqui e acolá e, sim, claro, vendedores de água, coco e cerveja gelados a cada poucos metros, para hidratar o cidadão (não custa lembrar que sombra, ali, só dos prédios e em alguns horários). Não deixa de ser uma forma de rebeldia e é gostoso ver frequentadores com suas toalhas tomando sol no canteiro central, praticando atividades físicas, fazendo piqueniques ou, até, assistindo a alguma das performances e projeções que as janelas da vizinhança oferecem de surpresa a quem passa. Sim, ali tem tudo isso.

E para quem ainda acha que pode ser um programa sem graça bater perna por um viaduto, uma boa notícia: ao longo da via acabou se instalando uma das mais importantes galerias de arte de rua da cidade, com dezenas de grafites disputando as empenas dos edifícios em todo o seu entorno. E, como é da gênese do grafite, o que está hoje pode não ser mais o que está amanhã, surpreendendo o visitante sempre com novas e poderosas imagens. Não é à toa que a SPTuris computou, só no passado mês de setembro, um público total de 85 mil pessoas circulando pelo espaço, com uma média de 9 mil aos finais de semana e quase 500 visitantes por dia.

A SPTuris também informa que fornece equipes de segurança nos acessos à área nos horários liberados aos pedestres, mas não custa reforçar que o conceito de segurança na região pode ser bem elástico e que são frequentes os casos de furtos de celulares, principalmente por ciclistas que se misturam aos esportistas e arrancam os aparelhos das mãos de quem dá bobeira. Pode não parecer, mas ali ainda é São Paulo.

Recentemente, no dia 19 de outubro passado, a Comissão de Administração Pública da Câmara dos Vereadores de São Paulo deu aval a um projeto do vereador Gilson Barreto (PSDB) que propõe reduzir o período de fechamento do Minhocão, estendendo o tráfego de carros até as 21h30. A proposta gerou protestos de moradores e usuários do espaço, como era de se esperar. Para o arquiteto Felipe Rodrigues, 32, vice-presidente da Associação Parque Minhocão, entidade que há anos se mobiliza para impedir retrocessos na ocupação do espaço de lazer, a proposta do vereador é absurda.

Para ele, o Minhocão "tem que ficar como está, o espaço já tem vida própria e a cidade tem que entender que as pessoas importam mais que os carros". E acrescenta: "Claro que queremos sempre que melhore, mas nada que amplie o horário para carros".

Os moradores e usuários do pedaço, sem dúvida, assinam embaixo. Se bem que tem muitos que gostariam mesmo é de ver o Minhocão no chão —mas, aí, é prosa para outro blog.

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