Entretempos

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Entretempos - Cassiana Der Haroutiounian
Cassiana Der Haroutiounian

A alma dos vagalumes - Natalia Timerman e Thomas Jackson

Ensaio Palavra-Imagem

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No nosso penúltimo texto do especial com vozes e potências femininas, trazemos a escritora Natalia Timerman - autora da coletânea de contos "Rachaduras" (Quelônio, 2019), finalista do prêmio Jabuti e "Copo Vazio" seu primeiro romance - com as imagens surrealistas do americano Thomas Jackson. Ela teve sua experiência como psiquiatra como ponto de partida para desenvolver a escrita. Partiu da vivência médica para a literária e é pela literatura que ela nos mostra as nossas rachaduras, o escuro da gente. Ele está intrigado com os movimentos e comportamentos dos enxames, algo que procura replicar em instalações temporárias que constrói com o objetivo de fazer uma única foto como parte de sua série "Emergent Behavior". A dança fluida e misteriosa de ambos é o que proponho para este domingo.

Escultura com objetos suspensos na paisagem do Americano Thomas Jackson, exclusivo entretempos
Escultura com objetos suspensos na paisagem, do americano Thomas Jackson exclusivo entretempos - reprodução
Escultura com objetos suspensos na paisagem do Americano Thomas Jackson, exclusivo entretempos
Escultura com objetos suspensos na paisagem, do americano Thomas Jackson exclusivo entretempos - reprodução

A alma dos vagalumes

Natalia Timerman

O choro do Téo soou tão imediato quando as luzes se apagaram que foi como se a queda de energia e a estridência acontecessem ao mesmo tempo, vencendo o barulho da chuva que no escuro, no grito, pareceu cessar. Mas não. A água continuava subindo aos nossos pés, o rodo não a vencia, e agora, sem poder enxergar, a tentativa de puxá-la para fora parecia inútil. Não conseguíamos nos ver, mal conseguíamos nos ouvir, o Téo não parava de chorar, com sua existência de dois anos inteira acostumada à luminosidade, mas senti, de alguma forma, meu esforço e o dos outros adultos em diminuir a tensão, em transmitir alguma calma às crianças que, afora o Téo, que se agarrou às pernas da mãe, seguiam soltas pela sala, tentando brincar: o jeito delas, talvez, de entender.

Sem internet, perdemos a comunicação com a dona da casa, perdemos a comunicação com o mundo. Era impossível alcançar a sensação de segurança, de abrigo, quando a única alternativa que tínhamos para um final feliz era que a chuva cessasse, o que obviamente não podíamos controlar. Continuei puxando a água para fora apenas para ter o que fazer, calculando o estrago dos móveis. O tempo passa de outro jeito no escuro, o tempo passa de outro jeito na chuva, mas o tempo se concretiza em desespero quando há água sob os nossos pés.

Meus braços já doíam. A luz ameaçou voltar, tudo piscou rapidamente duas vezes, o suficiente para demarcar o vulto de cada um, estático numa apreensão esperançosa, na escuridão que se firmou quando as lâmpadas se apagaram de novo, como que desistindo de tentar se acender. O choro do Téo mais forte.

A cada movimento dos braços, uma pergunta. Como manter a calma. Como tirar a água. Como parar a chuva. Como passar o tempo, o tempo das crianças. Elas se acumularam na varanda e consegui, por entre o som incessante da tempestade, distinguir suas interjeições. O que teriam encontrado para se distrair?

Vagalumes, escutei alguém dizer. Percebi então que estava só dentro da casa, todos haviam saído para a varanda. Vagalumes, e da soleira vi o pequeno acúmulo de pessoas parcamente iluminado pelo que as unia, aglutinadas em torno dos insetos — eram três.

Vagalumes me lembram a infância, os tempos no sítio que já não existe; o tempo que já não existe. Nunca soube o motivo de às vezes eles aparecerem, outras, não. Vagalumes e o cheiro doce de dama da noite: era sempre no mesmo lugar, o declive que ia da casa para a estrada, que me surpreendiam.

Gostávamos de segurá-los na mão, como se isso nos concedesse algum tipo de poder prometeico, mas os soltávamos depois. Exceto por uma noite, quando decidimos capturar um deles, talvez para nos apropriarmos de sua luz, entendê-la.

É fácil pegar um vagalume: ele não parece ter consciência do próprio apelo, é mais lento que os humanos, é só segui-lo um pouco, contornar o ar que voa com as mãos e pronto, é nosso. Dessa vez, eu estava com um vidro vazio de geleia e logo o coloquei lá dentro. Nos postamos em volta do vidro, atentos aos seus movimentos, suas quedas, seus vôos frustrados; atentos ao seu reluzir, que espaçava, que já quase não era. No claro, um vagalume é um inseto qualquer. Num pote. Preso, um vagalume deixa de luzir, deixa de ser vagalume. Eu já conseguia entender que era assim, mas não me convenci a soltá-lo. Nenhum de nós, diante do inseto apagado, teve sequer a coragem de dizê-lo em voz alta, como se fosse algum tipo de covardia deixar livre nossa presa. Mas era o contrário. Era o contrário.

O pote com o vagalume apagado ficou na mesa de cabeceira da minha cama. Quando acordei, ele não estava mais lá. O pote sim, estava: mas vazio. Eu sabia intimamente que alguém o devia ter libertado à noite enquanto eu dormia, mas uma parte minha — uma parte nossa, porque foi a conclusão a que chegamos em conjunto, nós, crianças — achava que ele tinha desaparecido sozinho, sumido, se feito invisível, inexistente; que tinha simplesmente evaporado. No entanto, passei o resto da estada no sítio — talvez da vida — olhando para cada pessoa como se ela fosse capaz, sem que ninguém soubesse, de libertar um vagalume em silêncio.

A chuva persistia, menos intensa, e, ao redor dos vagalumes, todos decidiram fazer um jogo. Era assim: a cada vez que um deles acendia, tínhamos que mudar de posição. Fiquei de fora no começo, observando, um pouco reticente; não sentia o escuro me proteger o suficiente do ridículo. Téo gargalhava, as crianças também. Não pude deixar de sorrir. Pisca. Muda. Pisca. Mexe. Involuntariamente, comecei a me mexer também a cada vez que um dos três vagalumes se acendia, e às vezes o faziam juntos, o que nos impelia a emendar um movimento no outro e rir. Pisca, pisca, mexe, mexe, pisca, e de repente dançávamos ao som da chuva, no ritmo ditado pelas nossas três ínfimas fontes luminosas, antecipando-o às vezes, refratando-o. A retina já tinha se adaptado à ausência de luz, era possível distinguir os vultos na noite, os movimentos, as risadas, e de repente entendi, como se o som do riso também pudesse emitir algum brilho, que a luz de cada um dos vagalumes à nossa frente era a mesma daquele outro que, décadas atrás, sumira do pote de geleia. A mesma. Como se ele tivesse virado só alma e continuasse a surgir a cada alumbramento de vagalumes outros; ou como se a memória da luz fosse também claridade.

Fomos flagrados em nossa dança quando a luz voltou; ríamos tanto que não percebemos quando os vagalumes foram embora.

Ainda chovia. Ainda dançávamos.

Escultura com objetos suspensos na paisagem do Americano Thomas Jackson, exclusivo entretempos
Escultura com objetos suspensos na paisagem, do americano Thomas Jackson exclusivo entretempos - reprodução

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