Entretempos

Curadoria de obras e exposições daqui e dali, ensaios entre arte, literatura e afins

Entretempos - Cassiana Der Haroutiounian
Cassiana Der Haroutiounian

Dança, Tomie, Dança

Um recorte da obra de Tomie Ohtake, em uma conversa com o curador Paulo Miyada

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sem título, obra de Tomie Ohtake, parte da exposição Tomie Ohtake dançantes. exclusivo entretempos
sem título, obra de Tomie Ohtake, parte da exposição Tomie Ohtake dançantes. exclusivo entretempos - reprodução

"[...] de vez em quando, depois que eu danço, vêm me dizer, ‘mestre, eu entendi, entendi sua dança’. Entendeu o quê? Fico um pouco decepcionado quando me dizem isso. Fico mais feliz quando me dizem que não entenderam o que eu estou dançando, que me digam, ‘não entendi, mas me emocionei’" Kazuo Ohno

sem título, obra de Tomie Ohtake, parte da exposição Tomie Ohtake dançantes. exclusivo entretempos
sem título, obra de Tomie Ohtake, parte da exposição Tomie Ohtake dançante. exclusivo entretempos - reprodução

- O que você acha disso? perguntava Tomie ao curador Paulo Miyada sobre alguma nova obra sua.

- Bonito, Tomie. Bonito.

- Mas agora me diz a verdade. Eu tenho 100 anos e ninguém mais me diz a verdade.

Ela buscava interlocução, me disse Paulo.

...

- Qual o segredo dos 100 anos, Tomie? Perguntou o curador.

- Estou trabalhando, esse é o segredo. respondia.

- Qual o segredo dos 101?

- Minha obra está pronta. Minha vida está pronta e minha família está pronta. Agora quero descansar.

obra sem título de Tomie Ohtake, parte da exposição Tomie Ohtake dançantes. exclusivo entretempos
sem título, obra de Tomie Ohtake, parte da exposição Tomie Ohtake dançante. exclusivo entretempos - reprodução

E assim foi, em fevereiro de 2015, faltando 6 meses para completar os 102. Deixando uma produção de mais de sessenta anos carregada de um senso de urgência, potência, texturas e formas.

Começou a produzir aos 39 anos, já morando em São Paulo, depois que seus filhos ganharam mais autonomia. Ela, como uma mulher nascida em Kyoto, no Japão, cresceu sob uma norma do cuidado com a família e não teria podido ser uma artista experimental ali. A ideia de experimentação é desviante e teria que ser fiel à tradição vivendo no Japão. Quando começou a criar, estava sedenta por experimentação na arte, evitando qualquer formatação ou qualquer filiação a um dogma fíxo e apostou em um público que percebe livremente a obra, resultando em obras nunca tituladas, pois ela achava que intitular era já uma forma de guiar a leitura da obra, ao invés de deixá-la acontecer e ser recebida pelo sentir individual de cada espectador.

sem título, obra de Tomie Ohtake, parte da exposição Tomie Ohtake dançantes. exclusivo entretempos
sem título, obra de Tomie Ohtake, parte da exposição Tomie Ohtake dançante. exclusivo entretempos - reprodução

Com sua inquietude e seu interesse latente pela arte abstrata, não passa mais de 5 ou 10 anos sem introduzir ou retirar elementos nos seus modos de fazer; nunca assinou um manifesto, porque ele serve como uma bula e não deixa abertas a múltiplas pontes e modos de fazer. Essa pluralidade também está refletida no Instituto que leva seu nome, em São Paulo.

Nesse papo que bati com Paulo Miyada, curador do Instituto e da exposição "Tomie OhtakeDançante" junto com Priscyla Gomes, falamos bastante sobre a multiplicidade da artista. Essa mostra retoma a missão de revisitar sua obra, de um novo ângulo, com a possibilidade de ativar outras percepções e trazer outros tipos de interlocutores. A dupla de curadores teve uma espécie de intuição de que existe uma ideia de movimento, uma relação entre corpo, gesto e traço em sua obra. "É uma obra que não tem uma duração embutida nela mesma, como um vídeo tem, mas que carrega um ritmo que seria interessante esmiuçar e comunicar com um outro vocabulário."

vista da exposição de Tomie Ohtake, exclusivo entretempos
vista da exposição de Tomie Ohtake, exclusivo entretempos - Ricardo Miyada

Decidiram então convidar 6 coreógrafos e coreógrafas de perfis e trajetórias diversos para revisitarem e acessarem a obra da Tomie, produzindo uma resposta da ordem da experimentação que vem da dança. "Tem uma questão de que a dança não é discursiva, assim como a pintura não é. O que a torna muito singular em relação a outras obras performáticas é que justamente por sua vizinhança com a música ela é uma linguagem abstrata. A coisa em si se faz na presença, na sinestesia e no acontecimento. Ela não significa. Ela pode rimar com outros recursos significantes, mas a rigor o que se vê ou o que se ouve na música está aquém e além do discurso narrativo, assim como na dança, pintura e na escultura. Especialmente da pintura abstrata de Ohtake."

obra sem título de Tomie Ohtake, parte da exposição Tomie Ohtake dançantes. exclusivo entretempos
sem título, obra de Tomie Ohtake, parte da exposição Tomie Ohtake dançante. exclusivo entretempos - reprodução

Os elementos discursivos em elipse deixam isso ainda mais evidente. A mostra está dividida em 3 atos e todas provocam o nosso sentir. A nossa presença. O nosso corpo. O nosso habitar o espaço. Um piso vermelho que te desestabiliza suavemente, amortece os pés, causa uma estranheza que atiça. Uma sala escura onde é preciso primeiro se acostumar com a penumbra. Um aproximar-se e afastar-se de cada pintura. Perceber os detalhes enquanto o tempo corre. Um diálogo lento. Que pede calma. Uma cegueira vermelha que pulsa. Obras imensas, expostas em tecidos vermelhos escarlate, suspensas. Uma imensidão sanguínea que atravessa todo o corpo. Provocam nossa coreografia como espectador pelo espaço.

obra sem título de Tomie Ohtake, parte da exposição Tomie Ohtake dançantes. exclusivo entretempos
sem título, obra de Tomie Ohtake, parte da exposição Tomie Ohtake dançante. exclusivo entretempos - reprodução

Ato I - obras da década de 60, quando ela começou suas obras baseadas em estudos em colagens. Uma imprecisão do rasgo a mão livre; suas bordas tremidas ampliadas na pintura. Traduzia em pinturas de médio formato. "É curioso porque são pinturas que, quando você olha esses retângulos coloridos, eles parecem feitos com pinceladas espasmáticas. Como se ela visitasse o concretismo acrescentando um fator de acaso e descontrole. Mas toda a relação com o impreciso, com o imperfeito, não está no pintar, mas está no processo de condensação do acaso: no momento decisivo do rasgo dos papéis usados nas colagens-estudos. Para tornar o acaso tangível, você condensa a presença dele no tempo, e daí todo o resto do processo é de duração. "

Ato II - obras dos 60 até 2000. Pinturas cegas referindo-se a um primeiro ciclo de abstração da Tomie em que ela pintava com os olhos fechados. "Era uma coisa de se entregar para o gesto; do encontro do gesto com a resistência da matéria; com sua própria pulsão. A imagem surge dos cheios e vazios, na viscosidade das coisas."

Ato III - pinturas produzidas desde a década de 1970 até 2010, maiores, mais contrastantes, que gritam. Pinturas como corpos e seus múltiplos ritmos. Absorvem o espaço ao redor. Te atraem e te repelem. Acolhe uma pintura em grande escala – 10 metros de comprimento – que Tomie concebeu para a inauguração do Instituto e só agora volta a ser exibida. Os vídeos das 6 coreografias também habitam esta sala.

sem título, obra de Tomie Ohtake, parte da exposição Tomie Ohtake dançantes. exclusivo entretempos
sem título, obra de Tomie Ohtake, parte da exposição Tomie Ohtake dançante. exclusivo entretempos - reprodução

Assim como no traço da artista, a dança também se faz na tensão do improviso com o aperfeiçoamento e elaboração do movimento. Mas condensa os processos do improviso para que sejam mais tangíveis e tenham uma maior potência de acontecimento que está além do repertório do próprio corpo. E sente quem dança, sente quem vê. Como dizia Kazuo Ohno:

Se algo não está dentro de você, então não reverbera - mesmo que você tenha técnica, mesmo que seja grande o seu esforço. Não há dúvida. O que existe de verdade dentro do coração é o que atinge quem o assiste. Mesmo que o escondam, quem assiste vai entender. O que é a alma? E o desejo da alma? O que o espírito quer transmitir? É um problema candente. Na vida cotidiana, na dança, o que queremos transmitir amadurece aos poucos. Quando quisermos transmitir algo, só conseguiremos se o extrairmos, assim, de nossas raízes, e o mostrarmos dilacerado.

vista da exposição de Tomie Ohtake, exclusivo entretempos
vista da exposição de Tomie Ohtake, exclusivo entretempos - Ricardo Miyada

Hoje, perto dos 8 anos de sua morte, ecoa no improviso, no rastro, na sinestesia; Na geometria, na abstração e nas cores. Ela reverbera em seu vermelhar, cor tão forte em seu trabalho. O vermelho no Japão chama-se "aka", cujo ideograma alude à fogueira que arde em brasas. No caso do Brasil, a nação deve seu nome à vermelhidão da madeira cujo pigmento assemelha-se ao queimar do fogo. Uma cor primária, com cargas atávicas e culturais em diferentes povos e origens. Ela vermelhou. Suas linhas pulsam no corpo de quem dança; de quem sente; de quem aterra; de quem se deixa atravessar pelo entorno, pelas pinturas, pelo micro e pelo macro. Pela tinta e pelo desenho.

*a exposição fica em cartaz até 19 de março no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo

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