Entretempos

Curadoria de obras e exposições daqui e dali, ensaios entre arte, literatura e afins

Entretempos - Cassiana Der Haroutiounian
Cassiana Der Haroutiounian

Como era mesmo pisar e ter certeza do chão?

Ensaio Palavra-Imagem com Leda Cartum, José Henrique Bortoluci e Emmanuel Nassar

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Obra de Emmanuel Nassar, exclusivo entretempos
Obra de Emmanuel Nassar, exclusivo entretempos - reprodução

Para este Ensaio, convidei os escritores Leda Cartum e José Henrique Bortoluci para criarem um diálogo com trechos de seus livros recentes. "Formas Feitas no Escuro", quarto livro de Leda, vem como sempre com a profundidade de suas palavras, transitando entre fábula, crônica e poesia.

"O que É Meu", livro de estreia do sociólogo, traz uma prosa autobiográfica, afetuosa e elegante através das histórias de seu pai por esse Brasil como caminhoneiro. Ambos publicados pela Fósforo nos últimos meses, são para devorar.

Eu li um seguido do outro e por alguma razão intrínseca a eles, se conectam, se atravessam e de formas completamente antagônicas, dialogam em um acontecer entre o dentro e o fora, o escuro e o claro, o micro e o macro. Para acompanhá-los, escolhi as obras do pintor, desenhista e fotógrafo paraense Emmanuel Nassar, que está com uma exposição até 8 de agosto na galeria Millan, em São Paulo.

Obra de Emmanuel Nassar, exclusivo entretempos
Obra de Emmanuel Nassar, exclusivo entretempos - Ana Pigosso

Formas Feitas no Escuro

Leda Cartum

"Nessas últimas horas escuto os gatos no cio que cantam na madrugada. Pela janela do quarto os miados chegam fracos, parecem choro de gente —observo os meus dedos sujos da tinta da caneta e as paredes que quase balançam com as luzes de um carro que passa na rua. Se estivéssemos no oceano, seria noite ainda e o Atlântico estaria liso como um lençol: seria o momento em que perceberíamos que já não seguimos a rota com que partimos. E eu perguntaria às dobras da superfície da água: quando foi mesmo que deixei a terra? Como era mesmo pisar e ter certeza do chão? Antes que eu pudesse começar a responder, um peixe enorme e com rabo de baleia viria das profundezas para perto do meu barco, olharia nos meus olhos com seus olhos bem pequenos, abriria a sua boca de peixe, que é sem lábios, e me diria na língua dos peixes um segredo da vida dos peixes. Já deitada ouço ainda os miados agora mais altos: onde é que estão esses gatos?"

O que É Meu

José Henrique Bortoluci

"Entre os saberes que meu pai adquiriu nos seus 50 anos de estrada está uma notável habilidade em organizar cargas e volumes. Cargas mal distribuídas na carroceria do caminhão podem levar a tragédias. Meu pai conta de um acidente que ele presenciou no oeste do Pará: Fui o primeiro a chegar na cena do acidente. O caminhoneiro de tora deve ter dormido e bateu de frente com o ônibus numa ladeira. As toras devia tá mal amarrada, então uma saiu de cima da carroceria, arrancou a cabine do caminhão, entrou por dentro do ônibus e saiu lá na traseira. Tinha 51 pessoas no ônibus. Dava pra sentir o quente do sangue escorrendo no asfalto. Aquele tempo passava um ônibus por dia por ali, ou a cada dois dias, então vinha gente até em cima do bagageiro. Foi aonde que aconteceu a tragédia e só sobrou um passageiro vivo. Esse cara que não morreu ficou louco, passou a vida morando num posto ali perto; as pessoas ajudavam ele, ele às vezes varria o pátio do posto, às vezes não fazia nada. E os morador da região fincaram umas 50 cruz branca na beira da estrada no ponto do acidente. Quando fui com a sua mãe pro Pará, nas núpcias, eu cheguei a tirar uma foto dessas cruz, mas ela jogou fora, ela não gostava.

É preciso, então, saber organizar as coisas no seu lugar. As demandas das cargas conferiram a ele algo como um doutorado honoris causa em geometria aplicada. Encher um mero carrinho de supermercado na frente do meu pai é uma tarefa ingrata, já que qualquer tentativa de organização está sempre aquém das expectativas cartesianas que ele impõe, como se a divisão daquele espaço entre caixas de leite, ovos, legumes e produtos de limpeza fosse uma questão da mais alta importância para o destino da humanidade.

A doença, logo aprendemos, não respeita qualquer geometria. Ela desafia nossa capacidade mental de visualizar os caminhos pelos quais navegam fluidos, de mapear a sobreposição dos órgãos, de imaginar as dobras internas e compreender os limites do tumor.

Esse corpo teimosamente antieuclidiano ganha novas dobras, orifícios, cavidades, rugas. Formas carcomidas pelo tempo ou moldadas pelas mãos de cirurgiões. Em seu corpo doente, essas vias sinuosas, as vesículas flácidas e a matéria avermelhada se estendem para fora do corpo, se ligam a bolsas, canais e sondas, apêndices industriais que, moldados por nossas limitadas inteligências cartesianas, parecem tão estranhos quando acoplados ao orgânico e sinuoso do corpo. Adesivos quadrados, bolsas com fechos herméticos, ventosas emborrachadas, tentativas sintéticas de dar ordem àquilo que é visceral, escatológico, próprio dessa dimensão viscosa do humano que nos é tão familiar mas que escapa à nossa capacidade de bem dizer. Como se a palavra só pudesse surgir quando aceitássemos a farsa de que não somos intestinos, uretras, próstatas, urina, pele, pelos e merda, como se a civilização só passasse a existir quando escondemos essas dobras e matérias proibidas que nos põem de frente à nossa condição última de animais."

Obra de Emmanuel Nassar, exclusivo entretempos
Obra de Emmanuel Nassar, exclusivo Entretempos - Reprodução

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