Entretempos

Curadoria de obras e exposições daqui e dali, ensaios entre arte, literatura e afins

Entretempos - Cassiana Der Haroutiounian
Cassiana Der Haroutiounian

Da finitude à permanência - ensaio palavra-imagem

Com Amanda Mont'Alvão Veloso e Luigi Ghirri

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Fotografia do italiano Luigi Ghirri, exclusivo entretempos
Fotografia do italiano Luigi Ghirri, exclusivo entretempos - reprodução

Esta é nossa sexta edição do ensaio palavra-imagem com o Clube do Livro de Literatura e Psicanálise, organizado pela psicanalista e crítica literária Fabiane Secches. O livro de hoje é "Humanos Exemplares", romance de Juliana Leite, publicado pela Companhia das Letras. A convidada é Amanda Mont’Alvão Veloso, psicanalista, resenhista de livros e autora de "Psicanálise e Contradição: O Conflito na Ponta da Língua" (Dialética). Ela também é doutoranda em linguística aplicada e estudos da linguagem na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde pesquisa linchamento, inconsciente e desumanização.

As imagens que escolhi para acompanhar o texto de Veloso são do maravilhoso fotógrafo italiano Luigi Ghirri. Suas cores, suas pessoas e seus silêncios se conectam muito com as palavras de Veloso e de Leite. Se atravessam e se complementam dilatando o tempo e as reticências da memória.

Fotografia do italiano Luigi Ghirri, exclusivo entretempos
Fotografia do italiano Luigi Ghirri - Reprodução

Quando encontramos Natalia, a protagonista do livro "Humanos Exemplares", escrito por Juliana Leite, o que vemos é que ela habita a vida há muito tempo. É uma idosa de cem anos que acumula não só algumas dezenas de milhares de dias, como também uma soma significativa de despedidas. Mas, vamos percebendo, junto a ela, que abundância mesmo é de sentimentos e experiências, entre hesitações, firmezas e pormenores.

Fotografia do italiano Luigi Ghirri, exclusivo entretempos
Fotografia do italiano Luigi Ghirri - Reprodução

Ela mora sozinha em um apartamento que sedia atualidades e memórias. É endereço de futuro também, já que a vida segue, a despeito da morte do ex-marido, Vicente, dos familiares, e dos amigos que cultivou por tantos anos.

Há uma tradição, o telefonema diário da filha que mora longe, que procura encurtar a distância com a repetição de perguntas —o carinho se alimenta de reiterações– e com o cheiro dos xampus que envia para a mãe. A tecnologia pode até reivindicar a manutenção da conexão que nasceu pelo cordão umbilical e pelo desejo, mas são as duas personagens que assinam a autoria dessa ligação.

Nas minúcias, daquelas que dilatam o tempo, Natalia nos apresenta seus queridos e os legados deixados. Juliana Leite, com a descrição afetuosa que faz do viver de Natalia, a transforma em uma querida por tantos de nós.

Tive a feliz oportunidade de conversar com Leite e Tamiris Busato no podcast da editora Companhia das Letras, que publicou o livro, e pude ouvir da escritora uma expressão que me encantou: a morte é como uma dobra da vida. Ela vem. E Natalia paga o preço do testemunho de quem vive muito: ela vê, pouco a pouco, seus amados morrerem. Imagino que tenham sido levados pela carruagem eternizada por Emily Dickinson –"porque eu não pude parar para a morte, ela gentilmente parou para mim".

Não é com melancolia que Natalia experimenta essas partidas. É justamente por elaborar seus lutos que a personagem preserva em si as permanências simbólicas que fazem suportar o adeus a quem ou a que se ama, ao marido ou à dignidade sequestrada pela ditadura militar brasileira, que torturou aproximadamente 20 mil pessoas, segundo a organização Human Rights Watch, a partir do relatório da Comissão Nacional da Verdade.

Fotografia do italiano Luigi Ghirri, exclusivo entretempos
Fotografia do italiano Luigi Ghirri - Reprodução

O período de exceção instalado de 1964 a 1985, em que a violência institucional foi regra, não é um capítulo à parte de "Humanos Exemplares". É tecido estruturante da narrativa e das vidas que a constituem. Juliana Leite comenta que queria se aproximar de acontecimentos históricos que fazem a nossa vida encolher para pensar a continuidade possível: como determinar o que vai haver para o almoço quando tudo desmorona ao redor?

Além da ditadura, que transcende gerações por seus estragos e dores imprescritíveis, Natalia vive, no plano atual, uma ameaça externa que faz com que as pessoas precisem se refugiar dentro de suas casas, como o que vivemos durante a pandemia de Covid-19.

Curiosamente, o encolhimento forçado em situações de contingência, muitas delas imprevisíveis, permite ver a elasticidade dos fios que compõem uma existência que combina, já de saída, pulsão de vida e pulsão de morte. Beleza e terror, como escrevera Rainer Maria Rilke, acontecem ao humano. O amor e a morte governam o mundo, dissera Sigmund Freud. Que o amor sobreviva à morte, grita o Brasil.

O panorama social e os desafios particulares encontram, em "Humanos Exemplares", o enlaçamento indissociável que marca o nosso viver: sempre a partir de um outro, que nos assegura um lugar no mundo para além do corpo que nasce, e sempre com a natureza, que generosamente empresta o berço possível. Natalia é um humilde exemplar de humano, desses que admitem ser afetados por toda vida ao redor, humana ou não.

Fotografia do italiano Luigi Ghirri, exclusivo entretempos
Fotografia do italiano Luigi Ghirri - Reprodução

É uma personagem central, mas não carrega em si a exclusividade individualista e especial que marca as dinâmicas contemporâneas de reconhecimento. O eu dela não coincide com um destaque; é, antes, uma instância de atravessamento por outros e suas ausências.

Raramente vemos o eu conduzindo a narrativa, e ela nos conta o porquê: "É bem raro eu dizer que não gosto das coisas com tanta certeza, eu sei, mas não é por causa das coisas, e sim por causa do eu. Não tem muita graça dizer eu todos os dias, a torto e a direito, ainda mais quando se vive sozinha e já se conhece tão bem a opinião de quem aparece no espelho".

Natalia, mais que um eu, empresta corpo, voz e memória às pessoas que lhe são tão preciosas, compartilhando a existência. Com ela vivenciamos a filha que mora longe, Vicente, Sarah, a mãe e a irmã que se foram. Na contramão ao indivisível e à unidade, ela se faz múltipla em cada divisão sua que aparece, em cada contradição que temos a sorte de presenciar, celebrando, junto a Walt Whitman e sua "Canção de Mim Mesmo", a vastidão em si. E ao redor também.

Se a inteligência artificial vai extinguir o processo de humanização –a pergunta que não cala em nosso tempo— ainda não sabemos. O que temos de palpável e que se assemelha a um bote salva-vidas é a capacidade crítica, obtida não sem uma implicação do sujeito com o próprio mundo.

Com "Humanos Exemplares", o olhar é aguçado para o dimensionamento das existências e o efeito de uma pessoa sobre a outra. Nós, a humanidade, não somos a última bolacha do pacote e partilhamos de grande insignificância perante o universo. A despeito da péssima fama da castração, um ponto de partida como esse não impede vivências extraordinárias, pois abre portas para a graça das miudezas e a preservação nas finitudes. Natalia que o diga.

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