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Afroturismo, cultura negra e movimentos

Guia Negro - Guilherme Soares Dias
Guilherme Soares Dias
Descrição de chapéu São Paulo

Chafariz do Tebas não volta para o centro de SP por falta de vontade política

OUTRO LADO: Secretaria Municipal de Cultura diz que não está nos planos reconstrução para não criar 'falso histórico'

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Guilherme Soares Dias
São Paulo

O Chafariz da Misericórdia, construído em 1792 no Largo da Misericórdia, no centro de São Paulo, pelo arquiteto Joaquim Pinto de Oliveira, conhecido como Tebas, é considerado a tentativa mais remota de embelezamento público da cidade. A obra foi uma grande revolução para a época, pois trazia água potável para a população, além de ter um efeito estético.

O monumento não era tombado pelo patrimônio histórico e foi retirado em 1886/87 e depois disso há tentativas de recolocá-lo no antigo lugar, mas o poder público parece ignorar a importância da obra e da sua função: ter água para as pessoas que por ali passam.

Os chafarizes nos séculos passados eram locais de sistema de abastecimento de água e ponto de encontro que causaram incômodo no poder público. O coordenador do Instituto Tebas de Educação e Cultura, o escritor Abilio Ferreira lembra que a população escravizada era quem utilizava o recurso da água. "A cidade tinha problema de abastecimento, como ocorre hoje", ressaltou, em entrevista ao podcast Guia Negro.

Com quatro torneiras e talhado em pedra de cantaria, uma grande modernidade para a época, o chafariz tinha formato de pilão e aparece em aquarela e desenho de pena de José Washington Rodrigues. "É uma mostra de que a São Paulo urbana do período colonial, tem a marca do Tebas, que renovou sua paisagem", ressalta o escritor que tem um livro sobre o arquiteto. Há ainda uma foto de Militão Agusto de Azevedo que registra a obra.

Vista do largo da Misericórdia, no centro de São Paulo, em 1862, ainda com o chafariz de Tebas em frente à igreja; imagem do Álbum Comparativo de Militão Augusto de Azevedo
Vista do largo da Misericórdia, no centro de São Paulo, em 1862, ainda com o chafariz de Tebas em frente à igreja; imagem do Álbum Comparativo de Militão Augusto de Azevedo - Reprodução

Tebas nasceu em Santos e foi escravizado pelo português Bento de Oliveira Lima, um conhecido mestre de obras com quem teria aprendido o ofício de arquiteto. Com Lima, ele veio para a cidade de São Paulo atrás de melhores oportunidades de trabalho, numa época de ebulição da construção civil.

Conquistou a alforria aos 58 anos e trabalhou para diferentes irmandades de igrejas: do Carmo, Franciscana, além do Mosteiro São Bento e de ter feito a fachada da segunda versão da Catedral da Sé (atualmente é a terceira versão que está em pé). Uma estátua homenageando o arquiteto foi construída em 2020 na Praça Clóvis Beviláqua, na Sé, em frente à Igreja da Ordem Terceira do Carmo, sendo executada por pessoas negras como o artista Lumumba Afroindígena e a arquiteta Francine Moura.

O chafariz voltou ao cenário urbano em uma réplica na Jornada do Patrimônio, evento promovido pela Secretaria Municipal de Cultura, em 2020 e novamente tinha água potável disponível para a população e continuou sendo bastante útil, em uma região com pessoas em situação de rua, trabalhadores de comércio e transeuntes diversos. A água disponível virou uma festa e foi como se o século 18 estivesse ocorrendo ali novamente.

Ausente do Largo da Misericórdia, o chafariz é um testemunho da São Paulo colonial e foi um local responsável pela identidade do povo paulistano, uma vez que era lugar de reunião de pessoas que iam até o local abastecer as casas de água. "Ali se reuniam muitos africanos, sobretudo do grupo linguístico banto e indígenas. Era um lugar de sociabilidade, conflito, de conspiração, sempre sob vigilância do Estado para evitar rebeliões", ressalta Abilio Ferreira.

O próprio apelido do arquiteto, Tebas, significa, pessoa empoderada, e a palavra tem origem quimbundo segundo o Houaiss e na internet aparece como de origem tupi. "Não sabemos se palavra já existia antes e apelidou o arquiteto ou se a existência dele, é que fez isso virar sinônimo de ‘quem é bom no que faz’", ressalta o escritor.

O chafariz foi contratado pela Irmandade da Misericórdia, que além da antiga Igreja da Misericórdia, da qual era vizinho, estava espalhada pela cidade, como é o caso da Santa Casa da Misericórdia. Hoje, o Edifício Misericórdia, localizado em frente ao largo onde ficava o chafariz, ganhou uma exposição sobre o antigo monumento e uma reconstituição feita com resíduos do próprio prédio que pertence à construtora Somauma. O local será transformado em moradias. Entre 14 de março e 28 de abril, o edifício serviu de palco para a DW, a Design Week. Cerca de 20 mil pessoas já visitaram a mostra, que foi estendida até agosto.

Fragmentos de prédio formam Chafariz construído pelo arquiteto Tebas
Chafariz do Tebas é reproduzido em mostra no Edifício Misericórdia - Divulgação

"O chafariz foi uma inovação sem precedentes, feita por um homem negro escravizado e que movimentou o centro da cidade em todos os aspectos, trazendo censo de comunidade, troca de informação, plano de fugas, paquera", lembra Bia Vianna, curadora de diversidade e inclusão do Edifício Misericórdia.

Para ela a volta do monumento, traria novo movimento em uma região que já abriga a Casa de Francisca – que tem feito apresentações musicais no calçadão. "Seria um ponto turístico e funcional. O Centro é colocado como lugar ermo e perigoso, porque há pouca circulação em determinados horários e lugares. Traria vida e seria uma reparação histórica", considera.

Não está nos planos

Com um investimento de R$ 63 milhões, a Prefeitura de São Paulo está neste momento requalificando 23 calçadões do Triângulo Histórico da capital. "A iniciativa busca revitalizar a região e promover funcionalidade, mobilidade e acessibilidade para todos". A previsão é que os trabalhos sejam concluídos até outubro de 2024, quando ocorrem as eleições municipais.

A reforma dos calçadões abrange uma área de 63 mil metros quadrados, que inclui o Largo da Misericórdia (no cruzamento das ruas Quintino Bocaiuva, Direita e Álvares Penteado), e consiste na troca do pavimento, aumentando sua resistência ao tráfego, instalação de novo mobiliário urbano, com áreas de convivência, sinalização turística, iluminação funcional e cênica de edifícios históricos, reestruturação da infraestrutura subterrânea de drenagem. A estimativa da prefeitura é que cerca de 2 milhões de pessoas circulem diariamente pelo centro histórico.

Já a recolocação do Chafariz do Tebas, como ficou conhecido, "não está nos planos, pois não há materiais e informações suficientes para sua reprodução, de modo a não se criar um falso histórico", de acordo com a Secretaria Municipal de Cultura, via Departamento do Patrimônio Histórico.

Abílio Ferreira, no entanto, reforça que o chafariz hoje continua tendo a mesma função do século 18: democratizar a água potável. "Há informações suficientes (para ser refeito) e a sociedade pode ser envolvida. Se reproduziu cenograficamente pode ser reproduzido de maneira definitiva", afirma, rebatendo a versão do poder público. "Se o chafariz voltasse seria uma intervenção de importância estratégica para a cidade, humanizando-a, uma vez que não há outros chafarizes com água potável, seria uma inovação e um trabalho pela memória", defende o escritor.

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