Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

De volta à faculdade, agora sem poder usar lápis nem borracha

Retorno aos estudos sem a visão terá tecnologia e interação com professores para encontrar meios de aprender e fazer provas

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São Paulo

Com quase o dobro da idade de quando fui calouro pela primeira vez, nesta semana voltei para a faculdade.

Agora, em vez de lápis, borracha, caderno e um monte de pastas para guardar folhas avulsas, levei só um smartphone e um teclado sem fio. Os equipamentos permitirão dedilhar anotações em ritmo frenético em arquivos digitais durante as aulas.

É que, se há quinze anos eu já não enxergava a lousa, agora não vejo nem o que escrevo no papel.

O retorno foi para a mesma escola de antes. O curso também é de música, dessa vez um bacharelado em piano popular —minha formação anterior foi em educação musical.

Logo na chegada, descubro que preciso redesenhar meus mapas mentais. A recepção antes era à esquerda após a escada, agora fica à direita. O caixa da cantina e As pias do banheiro também mudaram de lugar em alguma reforma dos últimos anos.Por isso, mesmo que tenha andado todo aquele espaço diariamente, prefiro fazer as primeiras caminhadas com uma profissional da escola ao lado, para ir retomando a confiança aos pouquinhos.

A volta para a faculdade depois de tantos anos teve como propósito, além da busca por mais conhecimento e aperfeiçoamento técnico, refazer laços com pessoas que se dedicam à música após ter me afastado da área e perdido contato com a maioria dos amigos e professores.

Muito desse distanciamento aconteceu por causa do agravamento de minha deficiência visual. Com o avanço dela, o uso de partituras foi ficando inviável. A situação mudou a partir de 2020, quando aprendi a ler e escrever música em braille, o que ampliou meu interesse pela área.

Na véspera de meu novo primeiro dia, só consegui dormir por poucas horas. Pensava em como me apresentaria aos professores e em coisas que ainda não sei como fazer agora que serei um estudante praticamente cego. Como será que vou fazer as provas? Se os professores derem uma partitura em aula, que certamente não será em braille, devido à baixíssima disseminação desse método de escrita para música, darei conta de aprender de outro modo rapidamente? Vou conseguir me enturmar com a turma da nova geração ou haverá uma barreira grande entre meus 30 e poucos e os nem 20 de alguns?

Sobre fazer amigos, me dei conta de que a deficiência visual muda bastante o funcionamento das coisas. Muitas vezes a gente não escolhe com quem vai conversar, simplesmente por não sabermos quem está na sala, no escritório, na festa. Não dá para olhar para o lado e saber se a pessoa está com cara alegre ou de poucos amigos. Dependemos muito de quem demonstra algum interesse pela gente e vem dar um "olá" ou perguntar se precisamos de alguma ajuda.

Claro que deixar a vergonha de lado e passar a cumprimentar qualquer pessoa que aparece ao ouvir o som dos passos também ajuda a ser notado e abre oportunidades para que nasçam conversas, especialmente com quem tem dúvidas sobre como faz para se aproximar de alguém que não enxerga. Mas é meio deselegante deixar a pessoa cega ter que fazer isso, seja gentil e proativo e fale com ela quando chegar e quando for sair, pra que ninguém fique falando sozinho.

Para meu alívio, meu primeiro dia de aulas foi mais de boas-vindas do que de trote. Professores pareceram receptivos, dispostos a conversar sobre melhores formas para eu acessar todo o conteúdo. Em uma disciplina em que se usa mais esquemas com flechas, pentagramas e letras soltas, já começamos a avaliar se fazer as provas oralmente não seria a melhor solução. Não acho que abolir as provas escritas para alunos cegos possa ser uma fórmula para a maioria das disciplinas e achar um jeito de oferecer material acessível é fundamental, mas, no caso específico, considerando meu conhecimento prévio do assunto, a disciplina e a praticidade,a ideia pareceu confortável e bem razoável.

Acredito que conversas como essas serão constantes. SE acho fácil dizer que tal acorde é o dominante em determinada tonalidade, teria dificuldades em ditar um texto de um par de parágrafos.

Já na saída da aula, quando a turma se dispersou em bando e pensei que iria tomar o caminho de casa sozinho, um colega veio conversar comigo. Disse que seu melhor amigo de infãncia era cego, sabia tudo sobre guiar e ditar o conteúdo da lousa durante a aula. Ficou combinado que irá me apresentar a mais gente e, se eu tivesse certeza de que queria isso para mim mesmo, iria até me incluir nos grupos de WhatsApp da moçada. Entrei e já avisei que poderia demorar para reconhecer a voz de todo mundo, então era para que todos ficassem à vontade para me chamar quando me vissem por perto. Como mencionava, cegueira e inibição não convivem bem.

Já posso dizer que esses pequenos sinais permitem que eu me sinta confiante. Aprendi nos anos que se passaram que é mais fácil ser um aluno ou profissional cego que assume suas limitações e trata delas abertamente com colegas, chefes e professores, do que uma pessoa com alguma visão que se desdobra para fazer tudo sem que ninguém perceba suas dificuldades. Em minha primeira passagem pela faculdade, eu me encaixava direitinho nesse segundo grupo.
Nos muitos anos que se passaram desde que peguei meu diploma, estudei pouco escalas, arpejos e repertório, mas, com toda a experiência de vida que acumulei, pode ser o momento certo para recuperar o tempo perdido.

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