Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira
Descrição de chapéu paralimpíadas

Aprendizados de um paratleta acidental

Única maneira de compreender o goalball de verdade foi entrar em quadra e me preparar para levar boladas

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São Paulo

"Às vezes eu fico me perguntando, Filipe, o que você está fazendo aqui?", me questionou um dos atletas do meu time de goalball.

Não fiquei ofendido com a dúvida do meu companheiro de equipe. Na verdade, eu sabia muito bem que era o que todos ali deveriam estar pensando desde que comecei a praticar esse esporte, desenvolvido especialmente para pessoas com deficiência visual.

Vou tentar responder a pergunta. No início do ano, comecei uma atividade jornalística que envolve entrevistar atletas paralímpicos, principalmente cegos e com baixa visão.

Uma coisa é conversar com um profissional do futebol, da natação, da corrida, que bem ou mal pratiquei um dia e tenho algum repertório de onde partir para fazer perguntas decentes. Mas e como se faz uma boa entrevista sobre goalball, uma modalidade que tem um público altamente fiel e especializado? Perguntar só se a pessoa está bem treinada para o torneio e se o objetivo é conquistar os três pontos e fazer como o professor mandou não vale.

Um pouquinho a gente consegue aprender perguntando para quem tem experiência. Descobri assim, por ouvir dizer, que no goalball jogam três pessoas de cada lado da quadra, em frente a uma trave de seis metros de largura. Todos têm os olhos vendados e precisam mandar uma bola que tem guizo rolando ou quicando para o gol adversário, garantindo que ela toque em pontos específicos da quadra. Os mesmos jogadores atacam e defendem durante todo o jogo.

Mas a curiosidade em relação a esse esporte não me deixava. Já que eu falava o tempo todo sobre goalball para gente que entendia de goalball, eu tinha mais é que jogar. E quem sabe até eu não levaria jeito?

Para iniciar no goalball não é só reunir uns amigos, levar umas cervejas e começar a bater bola. Existe escolinha para quem quer jogar? Não fazia ideia. Comecei a perguntar para quem era do esporte como eu poderia fazer para ter essa experiência e a enviar emails para entidades de apoio a pessoas com deficiência visual para buscar uma oportunidade.

Levou um mês até eu conseguir chegar na quadra para uma primeira conversa. Mesmo sem ver, imaginei uma interrogação enorme quando me apresentei ao técnico dizendo que queria jogar. Ela ficou ainda maior quando contei que tinha 32 anos e que não havia praticado nenhum esporte coletivo desde que minha visão diminuiu de modo mais severo, há mais de dez anos.

Mesmo com um futuro nada promissor, fui acolhido e autorizado a voltar no próximo treino, que reuniria jogadores do time do Cadevi (Centro de Apoio ao Deficiente Visual) e da Apadv (Associação de pais e Amigos dos Portadores de Deficiências Visuais). As atividades aconteceriam no Centro de Treinamento Paralímpico, do CPB (Comitê Paralímpico Brasileiro), na rodovia dos Imigrantes.

Não treinei no primeiro dia. Fiquei ao lado da quadra observando e, de vez em quando, o técnico vinha ao meu lado passar algumas explicações sobre o que estava acontecendo. No final, pude assistir a um jogo de dentro da quadra, me posicionando atrás de um dos jogadores, para começar a experimentar a sensação da bola se aproximando rapidamente de mim.

No segundo dia, aprendi qual a posição básica do goalball quando o time está defendendo. A pessoa não fica, como eu imaginava, de pé com joelhos dobrados e braços abertos, como lembro que fazem os goleiros de futebol. Em vez disso, senta-se no chão, com braços apoiados para um lado e pernas para o outro. Quando a bola vem, é preciso se posicionar no melhor lugar possível, deitar, esticar braços e pernas e esperar a pancada.

Logo compreendi que era muito justificável a decisão do técnico de me deixar de fora dos momentos mais pegados do treino. Nos primeiros minutos em que joguei defendi uma bola quicada forte com o rosto, o que me fez voltar a ver estrelas depois de muitos anos. Levou mais umas duas dessas boladas até eu dominar o reflexo de sempre proteger a cara com o braço na hora em que a bola está perto.

Também comecei a aprender a fazer um arremesso básico, com uma pequena corrida e um movimento rápido com o braço, que parte de trás do corpo e deixa a bola escorregar da mão quando está rente ao chão.

Levaram mais alguns treinos para que eu descobrisse que, apesar de cada jogador ter uma posição fixa na quadra, é possível que eles flutuem, ou seja, mudem rapidamente para um outro canto na hora do arremesso, para tentar enganar o time rival, ou até façam passes para colegas de equipe.

Mais alguns dias já passei a ouvir transmissões de jogos de goalball pela rádio, veículo preferido dos cegos para acompanhar a modalidade, de maneira diferente. Entendia o que o narrador queria dizer quando falava de modo mais técnico, dizendo que a bola foi lançada de de 6 para 1, ou seja, foi uma bola em linha reta, ou de 6 para 6, uma diagonal. Mais do que isso, comecei a, da mesma forma que meus colegas, compreender o andamento de jogos assistidos de dentro da quadra apenas pelo som, entendendo o que acontecia ouvindo o quicar da bola e as informações dadas pelo juiz para quem está no jogo.

Outra habilidade que vem se desenvolvendo aos poucos é a percepção da velocidade da bola e da provável posição e altura que ela virá dependendo de como e quão rápido quica. Um dos momentos de maior iluminação foi, ao assistir um treino, notar que a maioria das bolas que meus colegas jogavam quicavam duas ou, no máximo, três vezes, antes de serem defendidas por alguém do outro lado.

A busca era por aprender as regras e estratégias do jogo. Confirmei que estava certo, tem horas que a gente só consegue substituir a visão pelos outros sentidos e, no caso do goalball, era preciso levar muita bolada para compreendê-lo. Mas aconteceu que, de repente, eu estava gostando e muito de tentar a cada dia ser mais ágil, enfrentar a adrenalina de um arremesso contra meu gol e aperfeiçoar minha percepção auditiva. Ganhei do professor uma camisa de treinos.

Minha equipe iria participar em maio do campeonato Regional Sudeste 2, organizado pela CBDV (Confederação Brasileira de Desportes para Deficientes Visuais) com os principais times de São Paulo reunidos por uma semana em São José dos Campos. Eu não achava que deveria ir. Se fosse, corria o risco de alguém resolver me colocar em quadra e eu atrapalhar o time. Na véspera, o técnico me ligou e disse que era muito importante que eu fosse, um dos atletas da equipe não poderia mais participar e estávamos muito desfalcados, correndo risco de perder por WO. Cancelei meus compromissos e arrumei as malas do jeito que pude para ajudar o time. Resultado, estive em um campeonato com a dupla função de jornalista e atleta ao mesmo tempo. Só não tive dilemas éticos porque sabia que, muito provavelmente, eu era o mais inexperiente entre todos os participantes da competição.

Eu gostaria de ter um daqueles finais de filme para contar, de ter me transformado de patinho feio em atleta revelação do torneio e ter trazido um troféu para casa. Na verdade, na primeira partida em que entrei, já no segundo tempo, fiquei tão nervoso que levei mais de um minuto para conseguir colocar a venda nos olhos e passar pela checagem de equipamentos que a arbitragem faz com os atletas que vão jogar. Depois não percebi que a bola seria dada para mim no reinício do jogo e quase cometi um pênalti por deixá-la parada no chão e atrasar o andamento da partida. Meu time até ganhou uma, mas não passamos a fase de grupos.

Meu desempenho se resume em um conselho que ouvi de um jogador experiente: "Como você já tem uma idade avançada, precisa se dedicar muito se quiser ter um futuro aqui no goalball".

De um lado, entendi um recado importante, que o ambiente em que entrei era altamente competitivo e, se quisesse ir para o próximo torneio, teria de ser em outro patamar de jogo.

Com isso, aprendi a admirar a entrega dos meus colegas e a entender a desconfiança que tinham em relação a mim, que ainda não tinha muito a contribuir. Por outro lado, sinto que deveria também haver um caminho alternativo, da prática do esporte de maneira mais lúdica e mais inclusiva, em que o desenvolvimento pessoal obtido a cada dia de treino conta mais do que o placar.

O que me faz pensar em quem tem espaço nesse esporte hoje. A maioria dos jogadores com quem conversei veio de escolas especiais, frequentadas por crianças com deficiência visual, onde a prática do jogo acontece desde cedo, o que muito provavelmente favorece o desenvolvimento de habilidades como percepção auditiva e consciência corporal, útil para a quadra e também para fora dela. Com isso, aprendi a ser muito mais humilde em relação a minha capacidade de me orientar sozinho no dia a dia dependendo pouco da visão, sabendo agora que tem gente que faz isso muito melhor do que eu.

Eu, que vim da escola comum e quase não estive em instituições de reabilitação, só descobri a existência desse jogo nas últimas Paralimpíadas. E, a bem da verdade, fui pesquisar por dever profissional, após a Folha me convidar para escrever uma coluna sobre os jogos.

Como defensor de uma escola inclusiva, em que crianças com e sem deficiência aprendem e se divertem juntas, me preocupa a falta de oportunidades para que as próximas gerações de crianças cegas se beneficiem de um esporte tão rico e do qual o Brasil já é campeão paralímpico. Meu sonho mesmo é que pessoas que enxergam experimentem vendar os olhos para descobrir o quanto somos capazes de fazer sem depender da visão. Depois de passar por este aprendizado, acredito que a transformação que a experiência traz é uma das melhores lições de inclusão que alguém pode ter.

Do ponto de vista pessoal, o resultado dessa carência de oportunidades é que meus colegas de time diziam que eu parecia um bêbado de final de balada andando pela quadra. Por muitas vezes parecia antes e depois do jogo também. Atleta cego tira muito sarro dos companheiros de equipe, outra lição importante que preciso deixar a quem se interessar pelo jogo.

Cabe lembrar que o CPB busca realizar essa iniciação de crianças e adolescentes ao esporte com a Escolinha Paralímpica, que acontece no mesmo local onde fiz minha iniciação ao goalball.

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